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Permanece no imaginário (Laranja Mecânica)




Sempre que tenho a oportunidade de rever o clássico Laranja Mecânica é uma nova experiência cinematográfica. Tudo é tão familiar, mas ao mesmo tempo diferenciado, o que instiga um olhar mais apurado para o banido filme de Kubrick. A adaptação da distopia de Anthony Burgges ganha vida pelo olhar particular de Stanley Kubrick. Na trama o jovem Alex é líder de uma gangue que em uma única noite é capaz de vários atos violentos. Quando a polícia consegue prendê-lo, já com dois anos na cadeia, Alex decide participar de um programa do governo para a readaptação de jovens visando o convívio social.

O roteiro escrito por Kubrick ressalta a narração em off, o que aproxima ainda mais o espectador da narrativa. A psicopatia de Alex fica evidente quando o recurso é utilizado, pois justamente nos momentos mais dramáticos que o protagonista sofre por conta da "ultraviolência" do tratamento, a narração em off é utilizada em um tom sarcástico. Sabiamente o recurso surge em momentos pontuais na narrativa. Alex é um jovem que vive intensamente e não mede às consequências de seus atos. Kubrick apresenta ao espectador tudo que o protagonista é capaz para, posteriormente, Alex sofrer o que pratica. O tratamento  para a reabilitação do jovem é de uma violência extrema, ou seja, praticamente tudo que Alex fazia se volta contra ele. Interessante perceber como o roteiro de Kubrick trabalha fechando ciclos. Todos os personagens que foram vítimas do jovem possuem o momento de vingança. O senhor que vive nas ruas, os dois membros dos drugs, o escritor (mesmo que momentaneamente) e os próprios pais que encontram outro jovem e praticamente substituí um filho por outro. Outro ponto fundamental do roteiro é a crítica voltada para o Estado. Alex é cobaia de um experimento que visa a reabilitação dos jovens na sociedade. Alex não pratica atos violentos pelo simples fato de sentir náuseas, não por realmente estar curado. O protagonista é manipulado a todo o momento pelo governo para servir de exemplo e garantir votos. Outro ponto de destaque são os coadjuvantes na trama. Todos auxiliam no arco de Alex com o devido desenvolvimento.
 

Como a trama é focada em Alex, o destaque fica por conta de Malcolm Macdowell. Existe um certo exagero na atuação que cabe perfeitamente no mundo distópico e na delinquência do protagonista. O exagero permanece até o desfecho da narrativa no modo como Macdowell mastiga e olha para o ministro. O ator transita pelas camadas de Alex como se estivesse manuseando um brinquedo com inúmeras possibilidades. Existe um caos necessário que persegue Alex, ao mesmo tempo que canta, o protagonista pula, dança e pratica a violência. Um caos orquestrado por Kubrick. É  notório o rigor que o diretor tinha com os atores em cena, portanto a construção do personagem também foi uma contribuição importante de Kubrick. Refletindo na imersão da atmosfera distópica criada pelo diretor, as demais atuações são igualmente exageradas e flertam com o humor. Outro destaque é Michael Bates, como o guarda chefe do presídio. O bigode e trejeitos do personagem lembram muito Hitler. E fazer o personagem cômico voltado para uma figura tão detestável é um acerto do ator e diretor. Impossível não sorrir quando Alex o imita na cena em que está sendo transferido ou quando o chefe fica literalmente boquiaberto com a beleza da atriz que testa o protagonista. Anthony Sharp também contribui para a vertente cômica com puro sarcasmo como ministro que precisa contornar as consequências desastrosas do tratamento na impresa. A cena final é um duelo de exageros entre os atores que envolve o espectador. Em alguns momentos o exagero pode incomodar como na figura materna ou no escritor, porém dialoga com o exagero dos demais personagens. 


Falar da direção de Stanley Kubrick é detalhar os elementos narrativos que dialogam perfeitamente com o olhar do diretor ao conduzir as cenas. Logo na abertura, o zoom out evidencia não somente o olhar de Macdowell, como também o desing de produção, com destaque para todo o trabalho na composição da mise-en-scène, situando o espectador em uma atmosfera distópica. Durante toda a narrativa, Kubrick destaca o cenário repleto de cores fortes, com o vermelho sempre em evidência. Outro aspecto importante que Kubrick ressalta em algumas cenas é o jogo com as sombras. Quando o diretor filma o primeiro ato violento dos drugs, a sombra engrandece o grupo para, posteriormente, baterem no senhor que pede ajuda. Vale destacar que além do jogo de sombras, Kubrick reforça ao máximo as coreografias nas cenas voltadas para a violência de Alex. Aqui podemos ressaltar a presença marcante da trilha sonora, a verdadeira companheira do protagonista. Seja de maneira diegética, quando Alex canta Singing in The Rain, ou em momentos brutais, quando o protagonista ataca a dona de vários gatinhos. O contra plongé surge em momentos de pânico destacando ainda mais a vulnerabilidade dos personagens. E o que dizer da edição? Na cena específica em que Kubrick foca no quarto de Alex as imagens de Cristo, a trilha, os cortes e a direção formam uma tríade intensa. O destaque do elemento narrativo também pode ser analisado nas cenas em que Alex se coloca no lugar de um homem flagelando Jesus, ou nas demais imagens de violência que proporcionam prazer ao protagonista. 

Laranja Mecânica marcou várias gerações por ser uma obra atemporal. O desing de produção não torna a narrativa datada; a estética ainda permanece impactante para o espectador; a trilha original casa com a violência e com a atmosfera futurista; as atuações são marcantes pelo exagero que dialoga com a atmosfera distópica proposta e a direção de Kubrick consegue fazer que com todos os elementos fosse explorados de forma perfeccionista. transformando Laranja Mecânica em uma clássico presente no imaginário do espectador.

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