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Autoria e alternância de gêneros (Nascido para Matar)


Nascido para Matar não é um filme propriamente sobre Guerra, no caso específico, a Guerra do Vietnã. O roteiro de Kubrick intensifica os conflitos internos dos personagens e como eles lidam com as consequências da Guerra. O diretor explora uma atmosfera rígida e tensa na base de treinamentos dos recrutas. Ali os soldados são submetidos a várias situações que testam o físico e o psicológico.

Joker é o protagonista, porém o primeiro ato é voltado para a transformação de Gomer Pyle, apelido dado pelo Sargento Hartman, para o personagem de Vicent D'onofrio. Os conflitos internos que a princípio são explorados de forma cômica passam por uma transição de tensão até o ápice do ato extremo de Gomer. A pressão psicológica feita pelo Sargento é consequência de uma linha ditatorial. A primeira cena é um ritual de iniciação, onde raspar a cabeça é uma perda significativa para os jovens, mas como Kubrick explora adiante, não significa muito perante os horrores da Guerra em si. A primeira Guerra que os personagens enfrentam é a vivenciada nos treinamentos. Lavar o banheiro, passar por vários momentos de esforço físico e a transformação psicológica. Os conflitos internos de Gomer estão em evidência e Joker o incentiva a passar pelas piores situações. O roteiro de Kubrick intensifica a transformação dos personagens até chegar a instabilidade mental. Em vários momentos Kubrick proporciona falas aos personagens com o intuito de levantar questionamentos sobre as motivações da Guerra. A contradição não está somente nos diálogos, como também nos dizeres "born to kill" e no boton com o símbolo de paz. O protagonista como jornalista tenta retratar a realidade com ideais utópicos, mas logo é repreendido pelos superiores. Kubrick explora também o tédio entre os personagens para que a atmosfera seja transformada, posteriormente, na realidade crua repleta de violência. Além, da presença do narrador tão marcante nos roteiros do diretor. Outro aspecto importante que Kubrick intensifica nos demais atos são os arcos dos coadjuvantes. A personalidade de cada um auxilia no envolvimento do espectador. Se no primeiro ato o foco é a transformação de Gomer, no terceiro, o ritual de passagem é emblemático para Joker quando o protagonista deixa o lado emotivo, para dar lugar a máquina de matar. Na Guerra tanto faz quem está do outro lado.

O espectador já está familiarizado com o perfeccionismo de Kubrick. Em Nascido para Matar o diretor intensifica alguns pontos marcantes da filmografia. É interessante analisar como Kubrick compõe a mise-en-scène no filme. No primeiro ato a autoridade é centralizada, ou seja, o Sargento Hartman sempre surge no centro da cena e em contra-plongé, porém a movimentação dos atores preenche a cena como um todo. Sempre que Joker ensina Gomer, algo acontece em segundo plano na cena transmitindo uma sensação de ritmo ao filme. Na cena que exige uma tensão maior como a do banheiro em que Gomer está tomado pela instabilidade, os três atores são suficientes para compor a cena. Cabe a Kubrick construir gradativamente a tensão com o close na expressão de Vicent. O mesmo acontece quando Joker mata a garota perto do desfecho do filme. O close e o zoom in são marcas registradas de Kubrick. Em várias cenas o diretor prioriza os recursos para destacar a intensidade e tensão. Por falar em tensão, vale ressaltar o trabalho primoroso na direção ao explorar a ação do sniper no terceiro ato. O sniper, na realidade é uma adolescente responsável pela morte de quase todos os coadjuvantes do filme, faz o espectador ficar atento aos movimentos e edição da cena. A tensão entre os coadjuvantes aumenta, pois eles não sabem a origem dos disparos. Kubrick alterna entre os personagens e a ação dos disparos. A edição de som também é fundamental para que a cena funcione como um todo. A cada disparo a câmera foca no sofrimento do personagem e o som intensifica ainda mais a agonia do espectador. 


Além de todo o controle de Kubrick nos mínimos detalhes, o trabalho dos atores é fundamental para que a transformação dos arcos funcione na narrativa. Os primeiros destaques são de Vicente D'Onofrio e R. Lee Ermey. O soldado Pyle e o Sargento Hartman são o impulso no começo da trama para impactar o espectador. Durante o primeiro ato a verdadeira Guerra que Pyle enfrenta e perde é proporcionada pelo terror psicológico que Hartman exerce no personagem. A tensão é refletida na transformação e no olhar que D'Onofrio compõe para Pyle. O espectador sabe que algo está fora do controle e em certo momento Joker até relata que algo vai acontecer. Mais uma vez a câmera de Kubrick capta com close-up toda a fúria de Pyler e o desespero de Joker. Naquele momento de impacto, o protagonista começa a perceber que a Guerra atinge a todos de forma diferenciada, porém com a mesma intensidade. Matthew Modine apresenta ao espectador uma transformação gradual para o desfecho impactante que o modifica de forma significativa. Nascido para Matar imprime a autoria de Kubrick que alterna momentos mais leves utilizando a metalinguagem quando um diretor aparece filmando os soldados e o drama psicológico que cada soldado enfrenta.

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