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Paixão pela tela grande (O Irlandês)


O Irlandês é um retorno às origens de praticamente todos os envolvidos no projeto. Poderia ser uma zona de conforto para diretor e atores. Martin Scorsese conduz temáticas relacionadas à máfia como poucos. Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci foram destaques nas atuações com O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros. Zona de conforto? Na realidade podemos resumir O Irlandês com uma única palavra: amadurecimento. Scorsese apresenta ao espectador todos os elementos dos filmes voltados para a temática de forma extremamente autoral, mas ressalta o amadurecimento e um viés diferenciado sobre o mundo dos mafiosos. O longa foca na vida de Frank Sheeran, um veterano de guerra que conquistou a lealdade da máfia italiana por décadas. Baseado em fatos, o filme retrata de forma amena os conflitos internos do protagonista e definitivamente não explora a zona de conforto apresentada em filmes antigos do diretor.

Um retorno ao território já conhecido do diretor causa certa nostalgia no espectador. Porém Scorsese aborda a temática por outro prisma e esse aspecto pode ser observado na atuação de dois personagens centrais: Frank e Russell. Um dos primeiros flaskbacks é o encontro dos personagens. Russell auxilia no concerto do caminhão de Frank. Para o protagonista trata-se apenas do acaso, mas para Russell é uma oportunidade de negócios. Aqui o espectador já percebe o que irá mover boa parte da trama: a troca de olhares. O olhar de Joe Pesci demonstra não somente uma ligação para os negócios, mas também um laço de fidelidade. Já Robert De Niro transmite leveza ao ser o ponto de equilíbrio entre os personagens. Como confidente e conselheiro, o ator apresenta ao público um protagonista que nunca se excede. A tranquilidade ao executar os serviços (ao "pintar casas") reforça a humanidade e as camadas de Frank. O lado humano do protagonista pode ser visto também no personagem de Anna Paquin. A atriz faz uma pequena participação, mas a troca de olhares diz tudo sobre os ruídos na relação entre pai e filha. No lado oposto está Al Pacino responsável pela veia cômica da trama. Jimmy Hoffa era um líder nato e cativava todos ao seu redor pelo poder da oratória. Com um jeito todo particular e explosivo, o ator é o diferencial da trama. Enquanto Frank somente absorve e tenta lidar com as consequências dos atos de todos ao seu redor, Jimmy é uma bomba relógio constante que explode a todo o momento. O roteiro explora de forma sensível os três protagonistas, mas também consegue cativar o público com a presença de coadjuvantes marcantes. O destaque fica por conta de Ray Romano que faz o possível para livrar o trio da condenação nos tribunais. Além dos personagens serem bem desenvolvidos, o roteiro situa o espectador por meio de imagens do arquivo no período histórico em que a trama é retratada. Os presidentes, Kennedy e Nixon, ambientam e reforçam a atmosfera do longa fazendo com que o público reflita sobre a dimensão e o poder da máfia local. 

O que o espectador observa na tela é um trabalho autoral e mais introspectivo de Scorsese. Todas as caraterísticas do diretor podem ser vistas em O Irlandês, mas a opção por explorar personagens com um viés mais leve e ameno reflete diretamente na direção oposta dos filmes antigos de máfia de Scorsese. O narração em off, a trilha sonora marcante, o vermelho nas luminárias nas mesas, a câmera que acompanha os atores, um zoom mais ríspido em momentos decisivos de reuniões importantes dos personagens, o close quando um deles acaba de receber uma notícia não muito agradável. Tudo é conduzido de maneira intimista e leve. Se em Os Bons Companheiros Scorsese tinha mais energia e urgência ao filmar, em O Irlandês a trama é conduzida na via oposta apresentando o mesmo domínio. A violência dá lugar à troca de olhares. Basta somente uma fala para que Frank saiba o que precisa ser feito. A violência é crua e pontual, porém somente em uma morte específica existe o close do personagem, as demais são filmadas com certo distanciamento das lentes do diretor. Além das características marcantes Scorsese ainda brinca com a câmera lenta para extrair a comicidade em algumas cenas.


O Irlandês é marcado pela humanidade com que Scorsese conduz a trama e envolve o espectador. No lugar da violência explícita, a troca de olhares. O filme é um retorno para a zona de conforto de todos os envolvidos, mas com alguns detalhes que fazem toda a diferença: os envolvidos tem a consciência da dimensão do projeto e o que ele significa para cada um. Desde 2011, Robert De Niro queria dar vida ao protagonista Frank Sheeran. Durante décadas Al Pacino alternava projetos de cunho duvidoso e Joe Pesci curtia a merecida aposentadoria. Um bom projeto provocou a reunião de nomes que são referência no cinema. Assistir O Irlandês não é somente uma aula de direção, como também reflete o amor de profissionais que dedicaram a vida pela arte. Em tempos de streaming ver o cinema lotado, nos faz refletir que as plataformas podem até mudar, mas a paixão pela tela grande irá permanecer.   

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