Coringa surge como uma renovação no universo da DC nos cinemas. A Warner decide investir em filmes solo dos personagens icônicos dos quadrinhos. Coringa foi uma aposta camuflada do estúdio. Somente um trailer lançado. Após a divulgação extremamente tímida, o espectador não sabia o que esperar do filme do vilão. Joaquin Phoenix é conhecido por filmes independentes e o diretor Todd Phillps era um tiro no escuro. Com a ótima repercurssão em festivais, o filme ganhou o Leão de Ouro, a equipe respirou aliviada. Porém à medida que o longa chegava a outros circuitos a mensagem de romantização em torno do psicopata gerou polêmica. Joaquin deixava entrevistas extremamente irritado e o filme começou a perder força. Acredito que o debate é sempre pertinente, pois a arte é um reflexo direto dos acontencimentos atuais. O mundo está caótico e líderes alienados somente inflam ainda mais o caos. Coringa é um filme que foge da curva das demais adaptações dos quadrinhos. Como cada espectador recebe a mensagem do filme é de cunho pessoal. Inconsequência dos envolvidos? Talvez. A arte é uma arma em forma de denúncia e Coringa pode ser um gatilho. Mas pensando sobre outro prisma, não é novidade que a origem do personagem sempre foi caótica e mentalmente instável, o que prepara o espectador para o que está por vir. O filme deixa claro no decorrer dos atos que Arthur Fleck não é um exemplo a se seguir. O protagonista toma sete tipos de remédios e ainda quer mais. Após o corte do governo para projetos voltados para a saúde pública, Arthur não consegue os medicamentos e tudo degringola. A transformação de Arthur em Coringa é feita aos poucos para que o espectador perceba que existe um pessoa machucada e que chegou ao extremo. Dessa forma o público consegue distinguir a realidade da bela ficção retratada na tela.
Na trama Arthur Fleck sonha em participar do talk show comandado por Murray Flankin. Vivendo de bicos, o protagonista carrega consigo um diário com pensamentos que mostra para uma assistente social. O diário é o reflexo da personalidade conturbada, porém com vislumbres de consciência. Ainda estamos falando de Arthur e não de Coringa. Aos poucos o roteiro de Scott Silver e Todd Phillips apresenta a transformação gradual de Arthur no vilão temido de Gotham. No primeiro ato os roteiristas deixam claro que a cidade vive o completo caos e abandono. Lixos por todos os lados. A população divide espaço com ratos gigantes e a desigualdade social é sentida a todo o momento. Arthur sobrevive ao mesmo tempo em que nutri o desejo de ser um comediante famoso. O roteiro possui clara inspiração em Martin Scorsese. Dois filmes do diretor são referências claras no decorrer da trama. O Rei da Comédia serve de inspiração justamente pelo fato do protagonista viver com a mãe e sonhar com a fama. Outro ponto é Taxi Driver, onde o protagonista caminha pela cidade tornando-se mais um lixo jogado e excluído da sociedade. Além da inspiração, os roteiristas conseguiram mesclar o arco do vilão com a figura poderosa de Thomas Wayne. Com um arco que toca novamente na temática sobre saúde mental, o protagonista é desenvolvido de forma intensa para ir ao encontro da figura de Wayne. Apesar da menção aos quadrinhos, os roteiristas deixam claro que a trama é centrada exclusivamente no estudo do personagem de Joaquin Phoenix. O filme pode causar cansaço justamente no arco da mãe do protagonista que toca sempre na mesma temática até chegar à revelação e em mais um trauma de Arthur. Após viver vários momentos difíceis em pouco tempo e com a ausência de medicamentos, no meio do segundo ato, a transformação de Arthur em Coringa é sentida pelo espectador. A violência é gráfica e dialoga perfeitamente na transição definitiva do personagem. Pedir que Murray o apresentasse com Coringa é o auge do protagonista que assume definitivamente uma persona adormecida. Em alguns momentos os coadjuvantes surgem somente como escada para o protagonista. Esse aspecto torna o ritmo do filme mais contemplativo. Todo o arco voltado para Sophie soa desnecessário. Explorar a personagem somente para enfatizar que o protagonista é excluído da sociedade evidencia a redundância do roteiro. Zazie Beetz é somente uma personagem que poderia ser facilmente retirada da trama sem causar ruídos no arco de Arthur. O roteiro deixa claro que Arthur é mais um dentre tantos que sofre com o abandono das autoridades. Ele representa uma população desesperada (V de Vingança manda lembraças). Ele é o reflexo do caos de Gotham. Ele é a ponta de um iceberg repleto de desigualdades.
Para o estudo do personagem ter força o protagonista teria que ser um ator competente que segurasse o filme por completo. A escolha de Joaquin Phoenix é o acerto do longa. O filme foi feito para ele e o ator compreende que tinha em mãos um dos personagens mais importantes no imaginário dos fãs de quadrinhos. Apesar do ator estar confortável em mais um personagem melancólico, o trabalho de Joaquin ganha a tela com uma força raramente vista. Existe um trabalho corporal significativo que vai além da perda de peso. O espectador observa duas horas de construção de personagem em riqueza de detalhes. O trabalho corporal é mais evidente, porém a vertente psicológica é sentida aos poucos. No primeiro momento o protagonista causa empatia pelas pauladas da vida. Não existe um momento se quer de alívio para o protagonista. Os momentos mais leves não passam de pura imaginação do personagem. Existe um carinho pela figura materna, mas que logo é substituída pela psicopatia do vilão. A risada tão marcante do Coringa surge no trabalho de Phoenix com um misto de sofrimento e atração. O espectador não sabe ao certo se a risada é um momento de tormento ou simplesmente consequência de uma vilania latente. O olhar de Joaquin mescla o vazio de Arthur e a potência de Coringa. Joaquin é a força que move o longa e uma indicação para o Globo de Ouro e Oscar não seria surpresa. É envolvente e cativante quando um ator realmente estuda e se dedica a profissão. Joaquin nasceu com o dom da interpretação e quem ganha é o espectador que observa na tela mais um belo trabalho do ator.
Como o foco é voltado exclusivamente para o trabalho de Joaquin, todos os elementos narrativos presentes no filme convergem para o estudo do personagem. A direção de arte envolve o protagonista com uma Gotham suja e caótica. Os lixos jogados servem de metáfora para a exclusão de Arthur da sociedade. O mesmo pode ser visto no apartamento do protagonista. Um local pequeno e abafado que reforça o aprisionamento de Arthur. Outro elemento narrativo que ressalta a queda psicolágica de Arthur é a fotografia. O apartamento é banhado por luz quando o protagonista deixa definitivamente a persona de Coringa vir à tona. O mesmo acontece com o figurino. Arthur é mais um dentre muitos que sofre para sobreviver e as roupas do personagem são reflexo da falta de recursos. Roupas gastas e sem vida. O predomínio do marrom reforça a melancolia de Arthur. À medida que o protagonista intensifica a presença de Coringa, as cores surgem em ternos sofisticados. Além do figurino, a trilha original e as músicas de bandas marcantes no imaginário do espectador destacam o arco do protagonsita. O som do violino causa um desconforto constante em momentos onde Coringa está em evidência. A trilha acompanha a trajetória de queda e ascensão do personagem. O elemento narrativo intensifica o caos na transição de Arthur em Coringa.
Coringa surge com uma nova vertente de filmes independentes da DC e sinaliza que o momento de transição para filmes com uma atmosfera mais densa pode ser o caminho de renovação do gênero nos cinemas. Coringa é extremamente atual e reforça a função da arte em dialogar com o espectador sobre o mundo doentio que vivemos. A polêmica em torno do filme é também o reflexo de uma geração que questiona e quer ser ouvida. Mas vale lembrar que Coringa é antes de tudo o produto de uma visão artística e que deve ser visto dessa forma. O cuidado na utilização dos elementos narrativos em prol do arco e da transição de Arthur em Coringa é reflexo do belo trabalho realizado por todos os envolvidos, por isso se faz necessário separar o gatilho da arte.
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