O diretor Mike Flanagan tinha uma tarefa extremamente difícil nas mãos: fazer uma continuação direta do clássico, O Iluminado, de Stanley Kubrick. Mais do que a continuação, o diretor precisa imprimir autoria e, se desejasse, com toques de nostalgia. Pois Flanagan vai além nos dois quesitos: mostra ao espectador que domina como poucos o gênero e entrega a nostalgia que os fãs, sempre exigentes de Kubrick, tanto aguardavam. A trama foca nos acontecimentos que sucederam os eventos no hotel Overloock. O pequeno Danny cresceu e tornou-se um adulto que carregou por décadas a sombra do pai. O protagonista não carregou somente os traumas, como também o vício de Jack Torrance. Danny acorda constantemente de ressaca. Ao perder tudo e em uma fuga do passado, o protagonista encontra no amigo, ou como ele mesmo faz questão de enfatizar, no único amigo Billy Freeman, um motivo para continuar. Ele passa a frequentar regularmente um grupo de alcoólicos anônimos e trabalha como enfermeiro em um asilo. Como todos os pacientes estão em fase terminal, o protagonista os acalma na hora da partida, por essa razão ele é conhecido como doutor sono. Paralelo ao trabalho como enfermeiro, Danny estabelece comunicação por vários anos com a jovem Abra Stone. A personagem também é iluminada, mas seu poder é muito superior ao de Danny. O roteiro também desenvolvido por Mike foca na relação dos dois personagens e em um grupo que se mantém vivo pela dor e morte de pessoas que possuem dons e habilidades. Rose é a líder do grupo e Crow a auxilia na busca por novas vítimas. Ao se conectar com a jovem Abra, Rose compreende que a ela é especial. Após a conexão, Abra precisa da ajuda de Danny para impedir a ação do grupo. Existe uma contemplação ao explorar a trama central e as demais subtramas. De forma calma e intensa, o espectador acompanha os arcos dos personagens. A falta de desenvolvimento só é sentida na personagem Snakebite, apesar de ficar explícito o trauma da personagem, ela parece um tanto quanto solta na trama. Os demais fazem movem o filme e envolvem o espectador.
Mike Flanagan apresenta ao espectador um domínio intenso ao criar a atmosfera de forma contemplativa. Os movimentos de câmera e a utilização do zoon in criam a tensão necessária para inserir o espectador na tensão e conflitos internos dos personagens. A autoria na direção dá lugar a uma bela homenagem nos momentos finais. Se nos dois primeiros Mike apenas apresentava pequenas referências, no desfecho a homenagem é completa. O diretor faz o protagonista retornar ao hotel e cada cômodo insere o espectador no filme de Kubrick. O retorno os atores como o trio Torrance causa certo ruído, porém a homenagem envolve por completo o espectador. Com os personagens inseridos no hotel, o diretor não somente os insere de forma orgânica na trama, como também explora elementos marcantes do filme de Kubrick. O diretor domina o cenário e utiliza o poder de Rose para alcançar a memória afetiva do espectador.
Os elementos narrativos são fundamentais para no resgate da memória afetiva do espectador. O hotel Overlook é um retorno ao passado do protagonista repleto de detalhes. Além do desing de produção, a fotografia com paletas escuras acompanha os personagem até o ato final. Ao despertar o hotel, as paletas ganham cores quentes para aproximar ainda mais o espectador dos traumas vividos por Danny. Já a trilha possui sons que causam sensação de incômodo. Existe também o resgate da trilha presente no filme de Kubrick. Vale destacar o trabalho da montagem que auxilia nos núcleos dos personagens. Perto do desfecho o elemento narrativo torna-se mais intenso. O figurino apresenta tons mais claros à medida que o protagonista permanece sóbrio auxiliando na transição do protagonista.
Um dos aspectos mais interessantes de Doutor Sono é a transição no arco do personagem de Ewan McGregor. O ator trabalha a serenidade em Danny que proporciona ao espectador uma empatia instantânea. Além de lidar com os traumas do protagonista de forma intensa, o ator precisava estabelecer uma tranquilidade para auxiliar na trajetória de Kyliegh Curran. Rebecca Ferguson transmite domínio na construção de Rose. Com um tom de voz todo particular, a atriz instiga o público. Vale ressaltar que a presença de Cliff Curtis e Zahn McClarnon com arcos próprios fora dos padrões estabelecidos em Hollywood. É nítido a entrega dos atores nos respectivos papéis. Doutor Sono é um filme que possui autoria e alcança em uma bela homenagem a memória afetiva do espectador.
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