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"Dai a césar o que é de césar" (O Rei Leão - 2019)


Uma das claras inspirações de O Rei Leão de 1994 é bíblica. Verdade seja dita, a animação tem um pouquinho de tudo: Kimba, anime de um leãozinho branco, Hamlet, de Shakespeare e Moisés e José, inspirações do livro sagrado. Vale resgatar então uma citação bíblica: "Dai a César, o que é de César". A citação é válida porque apesar dos grandiosos equívocos do "live- action", o filme de 2019 possui acertos e pode agradar o público infantil que não conhecia a animação de 94.  A essência é a mesma. Está tudo lá. A inveja e o rancor de Scar, a serenidade de Mufasa, o misticismo de Rafiki, a alegria de viver de Timão e Pumba, a preocupação das leoas e a trajetória de amadurecimento simbolizada pela jornada do herói de Simba. Literalmente, tudo no seu devido lugar, o diferencial fica por conta do CGI. Mas é preciso dar a César o que é de César na ausência de emoção e envolvimento com o público que guarda consigo a memória afetiva da animação. Se existe um fator que permeia todo o filme é a falta de expressão e empolgação que existia de sobra na animação. Os pequeninos não possuem a referência viva no coração e a carga emotiva do filme de 94, não existe a comparação imediata no momento em que as cenas são projetadas na tela. Para quem possui a memória afetiva, toda dramaticidade se perde de forma intensa. 

O roteiro permanece o mesmo com modificações pontuais. Scar possui alterações na famosa canção Be Prepared. O vilão somente recita a música envolvendo o espectador na aura sombria do personagem. Outro aspecto positivo que está diretamente relacionado com o vilão é a presença marcante do trio de hienas. Visualmente as hienas possuem uma expressão mais marcante e transmitem ao espectador o fator imediato do instinto de sobrevivência, afinal de contas, elas estão sempre de barriga vazia. A diferença no arco das hienas no quesito expressividade é gritante. O espectador sente a ira vinda do trio. Aqui o realismo funcionou e acrescentou ainda mais energia para a vilania de Scar. Os efeitos visuais estão diretamente relacionados com o arco dos personagens. Zazu, Timão e Pumba também tiveram o arco amplificado pelos efeitos. O realismo encaixou perfeitamente na aura dos personagens. Timão e Pumba são a alma da animação de 94 e no "live-action" a forma característica como os animais se movem proporciona dinamismo para a trama. Timão e Pumba são "os pais adotivos" que fazem o protagonista esquecer o passado e viver a vida de forma intensa. Se existe pressa nas relações estabelecidas da animação, aqui a trama é trabalhada de uma forma mais detalhada para que as conclusões dos arcos sejam sentidos pelo espectador. Existe claramente um filme antes e após o surgimento da dupla na trama e esse aspecto foi mantido e intensificado. Já Zazu está sempre inquieto e o realismo não prejudica o arco do personagem. Agora, se tem uma dupla que perdeu muito com o fator realismo foi Simba e Nala. Não existe conexão com o arco dos personagens. A trajetória de Simba não é sentida pelo espectador. Já Nala possui um arco diferenciado, mas a falta de expressão não conecta o espectador com o sofrimento da personagem. O recurso digital intensifica o arco de alguns personagens, mas em outros enfraquece demais a trajetória emocional distanciando o espectador em vários momentos da trama.

O que dizer das canções? A única que consegue expressar o que existia na animação é Hakuna Matata. A nova roupagem realista de Timão e Pumba funciona perfeitamente na tela e a essência da canção é mantida. Hakuna Matata introduz uma nova visão no olhar de Simba perante o mundo e a mudança é sentida de forma leve pelo espectador. Se a essência de Hakuna foi mantida, as demais canções perdem consideravelmente o sentido dentro na trama. O encontro de Nala e Simba em plena luz do dia? Can You Feel the Love Tonight? Então, "Dai a César, o que é de César". Como que a Disney pecou dessa forma? Justo em uma cena tão emocionante da animção? O mesmo acontece com Circle of Life. Rafiki não tem a mínima emoção ao erguer o futuro rei na pedra do reino. Outro elemento narrativo que faltou em relação ao original foi a fantasia. Claro que a proposta é diferenciada, mas muitas cenas que eram exageradas na animação poderiam ser mantidas com a qualidade dos recursos utilizados. Scar era apresentado sempre envolto por sombras e com a predominância do verde na animação. O vilão ganha aspectos mais sobrios, porém existe uma ausência de vida na fotografia. O sarcasmo dá espaço para uma escuridão permanente que transmite frieza de personalidade. 


O Rei Leão é um Clássico da animação e para o "live-action" seria fundamental manter a essência dos personagens. Visando esse aspecto Jon Fraveou foi além e fez com que os dubladores fossem donos dos personagens. Pumba é Seth Rogan. Existe a essência do personagem, mas também existe de forma mais evidente a persona do ator. O mesmo acontece com Timão. A fala ligeira é mantida, porém com diferenças que acrescentam na personalidade do carismático suricato. O mesmo acontece com John Oliver como Zazu. É o Zazu que conhecemos, mas com o timbre tão peculiar do apresentador. Algo interessante acontece com Chiwetel Ejofor. O ator compõe o personagem sobriamente, os sacarmos de Scar desaparecem e ganham escuridão na voz do ator. Seria um risco trazer o sarcasmo de Jeremy Irons para o novo Scar. Novamente cabe como uma luva a citação bíblica ,"Dai a César o que é de César". Jeremy foi perfeito como Scar na animação e Chiwetel como excelente ator compreende que precisava tomar propriedade do vilão de forma diferenciada e o faz intensamente. Já a questão da personalidade que sobressai ao personagem fica evidente em Beyoncé e Donald Clover. A impressão que se tem é que não houve o cuidado com a compreensão dos personagens. Não conseguimos nos conectar de forma intensa com a trajetória de Simba e Nala. 

A todo o momento fica a sensação no "live-action" da expressão bíblica "Dai a César o que é de César". Joh Favreau emprega todo o conhecimento que teve em Mogli e o aprimora na Clássico. Timão e Pumba, as hienas e Scar são os destaques significativos e os efeitos enchem os olhos do espectador. Mérito total dessa nova roupagem. Mas é preciso utilizar a mesma expressão para a emoção dos personagens, o envolvimento do espectador, a fantasia, a alternância de gêneros e a simplicidade das canções que fazem de O Rei Leão de 1994 um Clássico da animação. Ambos possuem qualidades e defeitos, mas se é realmente para utilizar a expressão "Dai a César o que é de César", meu coração é todo da animação. 

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