Pular para o conteúdo principal

Sammy, uma tesoura e a trégua (Os Banshees de Inisherin)




O que fazer quando o seu melhor amigo quer simplesmente acabar com a amizade e usa a justificativa que você é chato e que ele não quer perder tempo com conversas frívolas. Colm necessita mais do que nunca deixar uma marca neste mundo, uma música impactante. Sem compreender e questionando o fato de realmente ser considerado chato, Pádraic passa boa parte do filme tentando reatar os laços com o amigo. Cada tentativa é um dedo a menos para Colm, uma tentativa frustrada e ausente de esperanças para o tão sonhado legado musical.

Os Banshees de Inisherin toca em temáticas atuais e tem como pano de fundo a Guerra Civil Irlandesa. O quarteto principal vive em um pequeno vilarejo, Inisherin, absorvendo a atmosfera tensa da década de 1920. Enquanto Irlandeses travam Guerra entre si, o mesmo acontece com os amigos. A batalha entre eles é explorada em um crescente: diálogos intensos e engraçados, para, posteriormente, observarmos atitudes irracionais. o roteirista Martin Mcdonald trabalha de forma ríspida a ruptura dos personagens, para aos poucos refletirmos sobre como a ligação entre eles é complexa e leve ao mesmo tempo. Complexa porque a depressão toma conta do quarteto de formas distintas. Perceba como Pádraic fica mais intenso com a decisão da irmã. A ausência de uma figura tão presente, o faz compreender que ele perdeu tudo na vida que fazia sentido, inclusive, Jenny, seu animal acolhedor. Mencionar Siobhán se faz necessário, ela é o ponto de equilíbrio e racionalidade no longa. Em determinado momento a coadjuvante diz: "Não aguento mais a loucura de vocês". Ela precisa ser livre e deseja outra vida, enquanto os demais permanecem submersos no vazio da depressão. Dominic  sobrevive à violência física e ao abuso sexual paterno. O fio de esperança é Siobhán, que com toda delicadeza do mundo, o alerta que entre eles não poderá existir algum elo afetivo. Vale também a reflexão de como o transtorno mental é explorado no arco de Colm, com características marcantes: o distanciamento aos poucos do que mais gosta de fazer e a ausência de paciência com o melhor amigo. O fato de cortar os dedos é um alerta para algo maior. Outro ponto de equilíbrio é a senhora "bruxa", que alguns evitam pelo fator morte. Existe a questão da divindade na figura do padre, personagem marionete de todos, já a bruxa surge como um espírito anunciando algo assustador no arco dos personagens, porém, a coadjuvante só faz sentido na trama pelo fato do diretor explorar figuras divinas, mas ainda sinto uma ponta solta entre os demais.


O filme ganha força na corrida do Oscar, principalmente, nas categorias de atuação. Colin Farrell é de um minimalismo e delicadeza que poucos atores conseguem atingir. O minimalismo causa empatia instantânea no espectador. Colin empresta para Pádraic nuances entre a inocência e a brutalidade, porém, a bondade sempre esteve presente e retorna no desfecho mesmo que na superfície. Já Brendan é direto e extremamente carinhoso com Sammy, em uma das melhores falas do roteiro, Pádric acaricia o animal e diz :" Não vou fazer nada com você. Você é a melhor parte dele". O ator transborda sensibilidade no olhar em diversas cenas, uma em especial, quando o animal leva a tesoura na boca para longe do dono. Se não brotar uma lágrima nos olhos com a atitude de Sammy, vale rever seus conceitos.

Uma janela simboliza o distanciamento dos amigos e também o questionamento sobre o transtorno mental, quando você observa a tristeza do outro sem poder conforta- lo. Quem transita livremente pelas casas são os animais, verdadeiros amigos, quando os humanos possuem somente a solidão. Vale destacar também o figurino de Siobhán, que passa boa parte vestida de vermelho, simbolizando uma raíva por estar presa no local. Quando a personagem vai embora da ilha, ela veste o casaco amarelo, demonstrando um misto de tristeza por deixar o irmão, ao mesmo tempo o alívio vem à tona por deixar o local que está praticamente morto. Não é à toa que a personagem parte para o recomeço em um dia ensolarado. No desfecho, o distanciamento é quebrado pelo encontro de Sammy com o dono e no sorriso minimalista de Colin. Se um dia o animal tirou a tesoura de perto para evitar o pior, agora, Sammy é responsável pela trégua momentânea (aquele esboço de sorriso de Pádraic, já estabelece o retorno da amizade) entre os amigos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...

Uma guerra que está longe de acabar (Um Estado de Liberdade)

O período era a Guerra Civil Americana e o fazendeiro Newton Knight foi convocado para lutar, mas vários questionamentos lhe inquietavam: Morrer com honra defendendo a Nação? Qual o objetivo da guerra? Quais eram as verdadeiras motivações? Após perder o sobrinho, Knight responde ao companheiro: "Ele não morreu com honra, ele simplesmente morreu." O protagonista leva o corpo do jovem para a mãe e a partir deste momento é considerado desertor. Determinado e ao mesmo tempo refugiado em um Pântano com escravos foragidos, o personagem torna-se líder de causas significativas: A independência do Estado de Jones, no Mississippi e a questão racial.  A narrativa peca em alguns aspectos no roteiro por explorar subtramas desnecessárias que desviam o foco da trama principal. A montagem prejudica o ritmo do filme ao enfatizar a história de um parente distante de Knight. O mesmo acontece com a primeira esposa do personagem, interpretada por Keri Russel. O núcleo familiar é aprese...

"Isso parece uma novela" (Bad Boys Para Sempre)

O começo de Bad Boys Para Sempre é basicamente um resgate do primeiro filme dirigido por Michael Bay. Mike e Marcus estão em um carrão em alta velocidade trocando ofensas e piadas enquanto percegue suspeitos. Além de todas as referências, a trama gira em torno de vingança, uma vingança mexicana. Sim, os vilões são mexicanos. Bandidos de um lado, policiais do outro e segredos revelados.  Will Smith sabe como lucrar na indústria, apesar de algumas escolhas equivocadas em projetos passados, Bad Boys Para Sempre parece uma aposta acertada do produtor. Desde o primeiro longa a química entre os atores é o que move a trama e na sequência da franquia não seria diferente. Martin e Will são a ação e o tom cômico da narrativa. Os opostos são explorados de forma intensa. Martin está mais contido com a chegada do neto e Will na intensidade de sempre. As personalidades se complementam apesar da aposentadoria momentânea de Marcus. Tudo ganha contornos diferenciados quando a família em to...