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Sofrimentos, decisões e a dura realidade (Meu Pai)


Meu Pai começa com um conflito típico de gerações: Anthony eleva a voz e diz para a filha que não precisa de ajuda. Anne necessita que o pai aceite a ajuda de uma cuidadora para que ela consiga morar com Paul em Paris. Esse conflito logo aproxima o espectador da narrativa por estar presente no cotidiano de muitos pais e filhos. O que poderia ser um confronto momentâneo ganha proporções drásticas pelo fato de Anthony estar cada vez mais confuso sobre o que é real.

Baseado em uma peça homônima, o roteiro explora a temática central da confusão mental que Anthony desenvolve e o confronto com a filha.  O mal de Alzheimer avança de forma avassaladora e consome as forças do protagonista. Do outro lado, totalmente fragilizada, está Anne que precisa lidar com momentos muito dolorosos acompanhados de extrema sinceridade de Anthony. O protagonista menciona de forma carinhosa a ausência da filha mais nova. Se para Anthony a lembrança é motivo de alegria, para Anne, a lembrança é carregada de sofrimento. Existe de fato uma agressividade constante do protagonista com relação à filha. Cabe a Anne  tomar a decisão de cortar os laços e tentar seguir com a vida distante do pai. Durante os atos o espectador observa os acontecimentos pelo olhar de Anthony. A confusão mental provocada pela doença é desenvolvida de forma competente por Florian Zeller e Christopher Hampton. Essa confusão instiga o espectador em sentir constantemente o sofrimento do protagonista. Acompanhamos de forma intimista a angústia de tudo que poderia ser tão real e que em instantes não faz mais sentido. A falta de um relógio, a ausência de um quadro, a posse do apartamento, tudo fica confuso na mente de Anthony e reflete em sofrimento na filha. A gradação da doença provoca dúvidas em Anthony e, consequentemente, no espectador. Somos Anthony durante toda a narrativa em uma comunhão de sofrimento.

Anthony Hopkins nos faz um convite: mergulhe comigo na mente de Anthony. E aceitamos o convite do veterano ator que domina como poucos a arte de atuar. Anthony explora todas as camadas possíveis do protagonista. O sarcasmo seguido de uma dança, a fragilidade em momentos de lucidez e a constante confusão mental. Todas as camadas são exploradas por Anthony com um domínio impressionante para não cair em momento algum no melodrama. A atuação de Anthony nos instiga também pelo olhar perdido que a ator empresta para o protagonista. Do outro lado temos Olivia Colman, que carrega todo o peso da realidade de Anne. A atriz apresenta um sofrimento contido com a culpa em estar simplesmente cansada. Deixar o pai e seguir em frente é doloroso e necessário. O jogo entre a vida real de Olivia e o imaginário de Anthony ganham o espectador por completo. 


Os elementos narrativos de Meu Pai contribuem para a construção dos personagens. O azul transmite uma sensação de leveza. A cor está presente em objetos cênicos e no figurino dos personagens. Já fotografia é fundamental para intensificar a confusão mental de Anthony. Quando o protagonista ainda está com a filha, a paleta de cores é quente. Existe o conflito entre ambos, mas a relação ainda se faz presente. Quando o relacionamento fica distante, a paleta torna-se fria intensificando a dura realidade. A fotografia é tão marcante que ressalta a clareza para o espectador que aquele ato final é imerso em um breve momento real e solitário.

Vale um destaque especial ao elemento que nos auxilia na confusão mental de Anthony: a montagem. Ela nos aproxima de tal forma do protagonista que a todo instante não  sabemos o que é real ou imaginação. Yorgos Lamprinos realiza um trabalho que imprime perfeitamente a confusão mental do protagonista. E quem também merece o devido destaque é Florian que apresenta o trabalho seguro na direção ao intensificar enquadramentos de planos fechados provocando a sensação de confusão de Anthony. O close também é fundamental para ressaltar o sofrimento de Colman e Hopkins. Florian destaca a direção de arte com cômodos vazios no apartamento para ressaltar o distanciamento dos personagens. Meu Pai, indicado em seis categorias no Oscar, é um drama repleto do sofrimento e decisões que permeiam uma dura realidade.




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