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Pura versatilidade (Poderia me Perdoar?)


Melissa McCarthy precisava somente de um papel que a fizesse sair do estereótipo que Hollywood insiste em rotular certos atores. A atriz possui uma veia cômica marcante, mas em Poderia Me Perdoar?,  Melissa vai além e mostra ao espectador uma protagonista melancólica. Da mesma forma com que Melissa atrai o olhar do público para o humor, a atriz consegue envolver o espectador neste drama. A trama foca na cinebiografia de Lee Israel, uma jornalista que teve seus anos de reconhecimento e que vive no ostracismo. Com uma antipatia e sinceridade fora do comum, Lee não consegue com que Marjore publique seus livros. A oportunidade aparece quando a protagonista começa a forjar cartas de escritores mortos. A criatividade de Lee a faz escrever cada vez mais em nome dos falecidos. O crime dá certo e as coisas parecem finalmente entrar nos eixos na vida da protagonista. 

São vários elementos que fazem do longa uma verdadeira pérola da sétima arte. Um dos aspectos que auxiliam no arco da protagonista é o trabalho de figurino e maquiagem. Lee sempre usa roupas de tons frios e nunca aparece de maquiagem. O único elo afetivo é com a gata de estimação que logo irá falecer de velhice, além, é claro, a escrita. A direção de arte também contribui para a atmosfera melancólica da personagem. O apartamento é minúsculo e abafado, literalmente, sem vida. Os móveis estão no pior estado de conservação e as moscas insistem em dividir o local por conta do cheiro. O abandono é sentido pelo espectador que casa perfeitamente com o estado mental em que a personagem se encontra. Além da melancolia do cenário, a trilha sonora está presente praticamente em todo o filme, já que Melissa passa boa parte do tempo solitária, a música surge como companhia para o espectador. A fotografia é voltada para uma paleta de cores quentes quando a protagonista encontra Jack ou em momentos de maior tensão. 


O roteiro explora ao máximo a solidão da protagonista em um intenso estudo de personagem. Pouco é dito sobre a vida de Melissa. O foco é em determinado momento da vida da personagem e como ela decide tomar decisões que podem afetar a sua vida por completo. O ritmo do filme é contemplativo justamente pelo fato de o roteiro explorar as dificuldades da vida de Lee e como a protagonista tenta de várias maneiras não forjar as cartas como uma maneira mais fácil de conseguir pagar as contas. A construção da personagem ao longo dos atos envolve o espectador. As falas sarcásticas e a postura perante as relações humanas dizem muito sobre o arco de Lee sem tornar o roteiro expositivo. O encontro de Lee com Tina é um ótimo exemplo de como o roteiro explora a repulsa da personagem no contato humano. Não existe diálogo e quando perguntas invasivas são feitas, logo Lee faz questão de não entrar em detalhes. O que instiga o espectador é a motivação da protagonista em ao menos dar sentido para a vida com o trabalho intenso do imaginário criativo ao falsificar as cartas. O filme ganha mais vida quando o roteiro explora a figura de Jack. Um ótimo desenvolvimento do coadjuvante que eleva a comicidade na narrativa. 

Além dos elementos narrativos é preciso destacar o excelente trabalho de Melissa na pele de Lee. Um olhar perdido e vazio acompanha o espectador ao longo do filme. A postura corporal também diz muito sobre a melancolia da protagonista. A atriz literalmente se joga na cama como se ela fosse sua única companheira. Quando Richard E. Grant surge a atriz ainda mantém a postura da protagonista, porém, com um sarcasmo que proporciona para o espectador alívio cômico. Richard está ótimo como Jack que também transmite certa melancolia para o personagem. O público logo é cativado pela presença do ator em cena. Poderia Me Perdoar? percorreu festivais e proporcionou a Melissa uma indicação ao Oscar de melhor atriz. Indicação merecida pela competência com que a atriz se entregou para compor a personagem. Melissa prova que basta somente um papel interessante com roteiro consistente para que atores mostrem versatilidade.  

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