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Somos todos espectadores (Vision)


Um dos primeiros cursos que fiz voltado para teoria e crítica cinematográfica ressaltava um aspecto importante da crítica. Esse aspecto me acompanhou durante todo o filme Vision, de Naome Kawase. O personagem de Masatoshi Nagase carregava consigo a solidão. E eu carreguei por quase duas horas o significado implícito que estudei nos cursos. O verbo carregar muitas vezes possui um significado negativo, mas para mim, à medida que o filme avançava, o carregar tornava-se mais leve. O significado implícito é a parte da crítica referente ao envolvimento do espectador. Todo o arco de Tomo me tocou de tal forma que os aspectos negativos do filme ficaram pequenos perante a entrega do personagem. 

Na trama Juliette Binoche é uma ensaísta que procura uma erva chamada visão. Segundo a crença local, a erva cura os males da humanidade. No decorrer dos atos Jeanne percebe que na realidade a erva resgata uma intensa volta ao passado. Assim como fez em Esplendor, Naome utiliza a fotografia com paleta de cores quentes para envolver o espectador na vida da protagonista. Os momentos de resgate do passado são alternados com o presente em uma linha narrativa não linear. Aos poucos, de forma leve e introspectiva, o arco da protagonista ganha à tela. Os sofrimentos de Jeanne e Tomo ficam mais evidentes para o espectador. Com um olhar bem próximo ao de Terrence Maleki, a diretora foca principalmente na natureza para intensificar o sofrimento dos personagens voltados para a contemplação. O excesso de imagens pode cansar e tirar o espectador da trama, mas o roteiro da diretora insere personagens que estão diretamente ligados ao passado da protagonista trazendo o público de volta para a imersão proposta. Outro aspecto contemplativo é a trilha sonora que alterna momentos mais melancólicos quando o foco são os coadjuvantes, porém, quando a protagonista, a floresta, toma conta da tela, a trilha é pulsante e transmite toda emoção em torno poder que a erva exerce nos personagens. 

Além da natureza como protagonista, Juliette Binoche vive Jeanne, que alterna leveza ao mesmo tempo em que carrega consigo uma aura melancólica. Em determinado momento Jeanne reflete: "É isso que você quer de mim?", e assim, a trama ganha um aspecto mais intenso na relação entre o poder da erva e a vida pessoal da personagem. Para seguir e enfrentar o passado Jeanne tem ao seu lado Tomo. O trabalho de Masatoshi Nagase ganha à tela com um personagem molossilábico que também possui uma relação intensa com a floresta. A protagonista o testa da pior maneira possível tirando do personagem o elo de interação humana. É como se a floresta o fizesse expressar seus sentimentos pela dor. Um trabalho introspectivo belíssimo do ator que cativa e toca o espectador. Os demais coadjuvantes estão ligados de forma significativa com a floresta e proporcionam um peso mais dramático para a protagonista.


No decorrer dos atos o roteiro pode proporcionar sensações distintas no espectador. Assim como nos filmes de Malike, Naome explora a filosofia nas falas de Jeane e dos demais personagens. É um trabalho que cativa por completo o espectador quando a diretora explora a intensidade na trama. Alguns momentos de ápice dos personagens refletem o poder das imagens no filme de Naome. O fato da trama não ser linear e extremamente contemplativa eleva o filme ao patamar autoral. O que acontece em alguns filmes é que o aspecto mencionado anteriormente, o fator implícito, fala mais alto e conduz o espectador de forma tão bela que os aspectos negativos perdem força no decorrer dos atos. Eles estão lá e foram mencionados, mas o que Tomo fez com meu lado espectador foi bonito de sentir. O personagem me pegou pelas mãos e me fez sentir toda solidão no trabalho de Nagase. A entrega do ator ao admitir que não consegue viver só demonstra que a sensibilidade está além das telas e reverbera diretamente nos sentimentos de quem escreve. Assim, o crítico torna-se um espectador, para após um tempo, exercer finalmente seu olhar crítico com relação à obra.

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