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O jogo entre o domínio de Ari e o imaginário do espectador (O mal não espera a noite - Midsommar)


O diretor Ari Aster proporciona um jogo interessante para o espectador ao realizar seus projetos. Primeiro, o domínio total da obra. Ari faz o filme para si explorando ao máximo uma nova vertente do gênero terror. Segundo, o contato do espectador com a obra. Ari realiza filmes repletos de camadas para que o espectador os tome para si. Foi assim em Hereditário, e agora, em O Mal Não Espera a Noite - Midsommar. O domínio do diretor é nítido do começo ao término do filme. Quem ganha com esse jogo é o espectador que após dias ainda consegue extrair camadas de tudo que viu na tela. A trama é relativamente simples: Dani tenta superar um trauma familiar e aceita viajar com o namorado e os amigos dele para a Suécia. Disposta a viver uma experiência marcante e diferenciada, ela chega no vilarejo para uma data festiva. A população local comemora o solstício de verão, uma espécie de ritual pagão que acontece a cada 90 anos. Obviamente que várias situações estranhas acontecem com o grupo à medida que eles são forçados a participarem de alguns rituais do vilarejo. 

O jogo do diretor com o espectador acontece durante todo o filme. O domínio técnico de Ari Aster ao conduzir o filme é de encher os olhos de quem assiste Midsommar. Logo no primeiro ato o diretor ambienta o espectador com o auxilio da fotografia em uma paleta de cores frias para simbolizar a atmosfera da tragédia que a protagonista acabou de sofrer. O diretor foca no primeiro plano para extrair ao máximo a interpretação dos atores, especialmente, da protagonista. É preciso que o espectador sinta todo o sofrimento e luto de Dani e o primeiro plano auxilia constantemente no envolvimento com o público. Ari explora também em vários momentos ângulos diversos de câmera evidenciando ao máximo a riqueza de detalhes do local. Ao proporcionar uma visão invertida para o espectador logo na chegada do grupo, uma metáfora pode ser explorada reforçando que nada será normal. Se a imagem que o espectador tem é invertida, tudo ali dá margem para diversas interpretações. Realizar um filme de gênero que se passa de dia é um feito admirável e inovador no cinema atual. O que Ari entrega aos poucos para o espectador é um filme de atmosfera e sentimento. Um sentimento de desconforto que permeia a trama como um todo, mesmo que não esteja acontecendo absolutamente nada, o silêncio explorado na atmosfera provaca uma imersão imediata do espectador. Outro aspecto que casa perfeitamente com o roteiro de Ari é o domínio da mise-en-scène. Durante boa parte do filme a câmera do diretor permanece estática para que o roteiro envolva o espectador, porém, a movimentação dos atores em cena é constante e proporciona dinamismo ao filme. Sempre que algum personagem do grupo interage com outro, ao fundo existe uma dança acontecendo para que visualmente o filme permaneça em constante movimento. O diretor preenche lindamente a mise-en-scène com diversos rituais. Um domínio inovador estético que encanta o espectador. 

Os elementos narrativos corroboram e muito para o domínio de Ari durante todo o filme. A direção de arte é um destaque envolvente na trama, pois é com ela que o espectador tem o contato visual com costumes locais. A riqueza de detalhes nos transporta de forma significativa para o vilarejo. Em todos os ambientes a direção de arte reforça pistas que vão além do roteiro expositivo. Além, é claro, de expor todo o domínio nos detalhes, Ari reforça que é preciso analisar todo o conjunto para compreender as mensagens do roteiro e a direção de arte auxilia nesse aspecto. Outro elemento rico presente em todo o filme é a trilha sonora. O elemento instiga na criação da atmosfera e mais uma vez o domínio da obra é visto na junção dos demais elementos, que no conjunto intensificam o jogo proporcionado pelo diretor. A trilha em diversos momentos casa com o som diegético dos instrumentos tocados nos rituais e também com os gritos de sofrimento intenso da personagem. A junção dos três sons e a sincrônia deles é intensa e reforça o desconforto do espectador. A montagem auxilia diretamente no sofrimento da personagem e no arco dos coadjuvantes proporcionando dinamismo ao filme. Algumas transições são exploradas e a coordenação da montagem nas cenas intensifica a tensão. Especialmente no terceiro ato em que o casal participa separadamente de dois rituais, a montagem joga com as sensações do espectador a todo momento. Enquanto Dani vivencia aspectos mais leves com uma pausa no luto da família, Christian passa por momentos intensos em outro local do vilarejo. Assim, a montagem proporciona camadas mais profundas para os personagens e o filme cresce aos olhos do espectador.  


O roteiro do diretor peca ao infantilizar os personagens adultos na trama. Existe uma diferença gritante entre o domínio visual de Ari e o roteiro em torno do arco dos personagens. O problema que pode incomodar durante grande parte do filme é a conexão da viagem das drogas ingeridas com a superficialidade de algumas falas dos personagens. Esse aspecto é nítido na presença de Mark, o alívio cômico do filme. O arco do personagem é voltado para explorar piadas sexuais e aspectos estranhos do local. Outro ponto negativo do roteiro é que somente um personagem aceita se rebelar com tudo que acontece no vilarejo. Os personagens somem e o grupo aceita com naturalidade o que acontece. Em alguns momentos Dani questiona o namorado sobre os eventos, mas Christian insiste em jogar a culpa no luto da protagonista. Muito do que é explorado no roteiro impacta de forma direta nas atuações do elenco. Florence Pugh é responsável por criar a atmosfera de desconforto no filme. A atriz pega o espectador pelas mãos e o transporta para todas as emoções exploradas no arco da personagem. Já Jack Reynor não demonstra toda potência que o personagem promete. Em alguns momentos o espectador observa as camadas do personagem, mérito do roteiro e não da atução. Will Poulter  é um dos melhores atores dessa geração, o problema é que ele serve somente de alívio cômico no filme. Willian Jackson Harper possui a tarefa difícil de prender a atenção do espectador nos momentos expositivos do roteiro. O ator possui uma presença marcante no olhar que prende o espectador no seu personagem. 

O Mal Não Espera a Noite - Midsommar reforça o jogo que Ari proporciona de forma autoral com o espectador. O jogo está no domínio do diretor ao tomar o filme para si e saber exatamente o que quer transmitir ao longo dos atos e em deixar o filme posteriormente nas mãos do espectador. Além da riqueza de detalhes, o imaginário do espectador vai a fundo nas camadas propostas iniciais de luto e rompimento do casal.

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