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A riqueza dos detalhes (A Conversação)


A Conversação é um belo exemplo na sétima arte em que todos os elementos narrativos convergem para o estudo de personagem. Tudo no filme reflete o estado psicológico de Harry Caul. A edição de som, direção de arte, a direção de Francis Ford Coppola, trilha sonora, atuações, figurino e, claro, o espectador que fica envolto na angústia que percorre o protagonista entre os atos. Na trama, Gene Hackman é o melhor de sua área e um grande diretor, Robert Duvall, o contrata para vigiar um casal.  O perfeccionismo de Harry dá lugar aos diversos problemas de cunho pisocológico explorados no roteiro. 

No primeiro ato o foco é o trabalho de Harry e o casal andando em círculos em uma praça como se fosse um fato corriqueiro. Com toda precisão o protagonista consegue o que necessita para concluir o trabalho: fotos comprometedoras e confissões dos amantes. O roteiro de Coppola explora o mínimo possível  para que o espectador acompanhe aos poucos alguns momentos importantes na trajetória de Harry. O perfeccionismo, a religiosidade, a música e a solidão são pontos explorados pelo roteiro do início ao fim. Mesmo que em determinado momento Harry tente de forma incômoda um vínculo social com colegas de trabalho e manter uma amante em um pequeno apartamento, a tentativa de profundidade emocional é sempre afastada pelo protagonista. A linha tênue entre realidade e imaginação torna o terceiro ato mais intenso para o espectador. O resgate de um breve momento da infância mesclado com a realidade de Ann reforça o presente e o passado em termos de arco do personagem. Pouco é revelado ao espectador que acompanha a angústia de Harry durante os atos, esse aspecto reforça ainda mais o envolvimento com a trama.

Um elemento narrativo que acompanha o personagem dialogando com a solidão e musicalidade de Harry é  a direção de arte. No primeiro ato o protagonista preenche a mise-en-scène ao caminhar pela sala do apartamento. É nítido o isolamento de Harry por quase não possuir móveis na sala. Tudo muito simples, apenas um sofá, mesinha e cadeira. Coppola sabiamente explora a presença do ator no apartamento, para que no desfecho a sala complemente a perturbação do protagonista. Ao ser ameaçado Harry fica transtornado e quebra as poucas peças da sala. Outro fato importante da direção de arte é a ligação do personagem com a religião. Ao titubear perante a imagem de Nossa Senhora, com o tormento da descoberta, nem mesmo a punição da fé o freia. Coppola poderia terminar no close do telefone. Saber da ameaça seria um desfecho minimalista, um final em aberto para o espectador, porém toda a atitude posterior ao telefonema de Harrison Ford dialoga perfeitamente com a cena em que o protagonista caminha na sala no começo do filme. O paralelo entre a organização e o caos do desfecho intensifica o arco e estudo de personagem. 


A edição de som contribui também para o tormento do protagonista. A angústia aumenta a partir do momento em que Harry percebe que algo poderia ir além de um simples caso extraconjugal. Além do som, a montagem reforça nuances do protagonista no momento em que Harry descobre aos poucos o contexto da conversa. A descoberta é revelada com sucessivos cortes para que o ritmo fique mais intenso. Essa intensidade é reflexo da imaginação do protagonista. No terceiro ato o espectador acompanha com um grau maior de envolvimento a imaginação virando realidade. Se os elementos narrativos complementam perfeitamente o arco de Harry, o trabalho de Gene Hackman é o pilar para transmitir todas as camadas do protagonista. No começo da trama, Harry é um homem simples e muito focado, mas que já apresenta uma apreensão com a escuta do casal. Aos poucos Hackman acrescenta a tensão física e psicológica no protagonista. O único momento de alívio é quando o personagem carrega a culpa por confessar seus pecados. No desfecho o ator se entrega ao único prazer conhecido pelo espectador: a música.

Existem filmes que apreciados com maturidade enriquecem nosso olhar. A escuta percorre o filme em vários momentos intensificando o poder da edição de som. Seja no aspecto literal onde o protagonista escuta as conversas do casal ou na cena em que o padre observa o protagonista. A Conversação faz o espectador refletir como é possível observar os elementos narrativos no estudo de personagem e ressalta a magia da sétima arte com o total controle do diretor. Pensando bem, A Conversação está no topo das obras de Coppola. Um filme que prioriza a riqueza dos detalhes.

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