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Longe do cordial (O Animal Cordial)


O Animal Cordial presa pela atmosfera. A tensão é estabelecida logo nas primeiras cenas dentro da cozinha. Um casal rico entra no restaurante de Inácio e pede um prato sugerido pela atendente Sara. Ela também sugere um tipo de vinho. Neste momento, além da tensão gerada entre os funcionários, o preconceito é nítido quando Verônica ironiza o linguajar de Sara. Tentando manter o ambiente em ordem, Inácio é surpreendido por dois assaltantes. A tensão só aumenta e o assalto que era o maior problema fica singelo perto dos demais atos da trama. 

Gabriela Amaral Almeida acerta em conquistar o público pelo roteiro e direção. Como a direção de arte é focada exclusivamente no restaurante, a diretora consegue envolver o espectador o conduzindo por cada local do restaurante criando a cada cena uma atmosfera de suspense crescente. Além da direção firme de Gabriela, o roteiro explora de forma equilibrada todos os arcos dos personagens, em especial de Murilo Benício e Luciana Paes. O papel de Verônica e Bruno é ressaltar o preconceito social. Muitas falas do casal reforçam as diferenças sociais, principalmente quando os assaltantes invadem o restaurante. Verônica não hesita em chama-los de bichos e lixo para a sociedade. Um dos aspectos mais interessantes no roteiro da diretora é proporcionar o mistério envolvendo os protagonistas. Não saber os limites de Sara e Inácio torna a trama mais intensa. Mesmo que na metade do segundo ato o espectador tenha a noção de alguns desfechos, as reviravoltas presentes no roteiro deixam a previsibilidade de lado. 

Além da direção e roteiro, a trama ganha força pelas atuações. Murilo Benício proporciona ao protagonista um ar calculista e ríspido. Lembra em alguns momentos Christian Bale, em Psicopata Americano. A cena em que ele se encara no espelho trazendo variações de emoções para o protagonista no primeiro ato, já percebemos que o filme será todo dele, mas também temos uma atriz com potencial intenso e que consegue duelar perfeitamente com Murilo. Luciana Paes proporciona a protagonista várias camadas exploradas aos poucos para que gere dúvidas no espectador sobre a conduta de Sara. Murilo é preciso desde o início com as intenções de Inácio, já Sara ainda não sabe ao certo os rumos onde tudo pode chegar, mas quando chega ao desfecho compreendemos que ela era realmente a dona da situação. Ernani Moraes busca uma fragilidade e solidão presente no olhar de Amadeu que deixa o personagem vulnerável em determinadas cenas. Já Irandhir Santos é o retrato do preconceito explorado no roteiro. Com os longos cabelos e homossexualidade, a trama explora em Djair o quanto a homofobia se faz presente no papel de Inácio. Djair comenta que ao perder o cabelo é como se ele estivesse morto, a cena do personagem catando os cabelos no chão é de extrema sensibilidade dentro do terror instaurado nos atos.


Vale ressaltar a fotografia com paleta de cores quentes ao longo de todo o filme. Quando o foco são os protagonistas, a fotografia reforça a tensão e o terror presente nos atos dos personagens. Destaque para cena de sexo entre Inácio e Sara. O animal do título se faz presente onde os protagonistas se entregam de forma brutal e intensa. Murilo contido no personagem e Luciana demonstrando traços escondidos da persona de Sara. Uma cena que destaca perfeitamente os protagonistas, direção e paleta de cores quentes a transformando em algo forte e visceral. A trilha sonora acompanha os acontecimentos antecipando determinadas ações dos protagonistas gerando uma tensão maior no espectador. 

O Animal Cordial é tensão conduzida de forma inteligente e brutal pela direção de Gabriela Amaral Almeida. Ao criar a tensão necessária, a diretora também proporciona ao espectador um roteiro envolvente ao explorar camadas intensas dos personagens. A riqueza na construção e o jogo proposto para Murilo Benício e Luciana Paes engrandece a trama. Mesmo sabendo alguns rumos presentes no enredo, as atuações transformam e dinamizam o filme. Com um título extremamente irônico, a trama revela o lado mais brutal e vulnerável do ser humano. Um lado animalesco que está longe do cordial.

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