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O caos organizado da montagem (Vice)


Vice retrata um longo período da vida de Dick Cheney. No primeiro ato o espectador tem contato com a vida turbulenta do protagonista. Problemas com bebidas e temperamento agressivo são enfatizados. A partir do momento que Lynne o confronta sabendo perfeitamente que necessita de um marido determinado ao seu lado, Cheney começa a alcançar voos maiores na área política. O jogo de poder ressaltado na trama dialoga com as ambições do casal. A trama aborda desde o momento em que o protagonista se vê totalmente cru tentando lidar com situações mais amênas como mentir para a esposa que conheceu o presidente Nixon, como também ressalta situações sobre o questionamento ético e moral.

O foco de Vice é um estudo interessante de personagem interpretado de forma competente por Christian Bale. O ator transcende o físico. Ele vai além e a transformação é interna e externa. Interna porque o ator compreende a profundidade do protagonista, suas nuances e camadas mais profundas. Do que adiantaria a transformação física sem a compreensão do personagem? Uma composição focada somente no externo é facilmente sentida pelo espectador. Christian Bale é um ator do método e proporciona para Dick uma construção completa que não utiliza a transformação física como muleta. A entrega do ator é tamanha que ao longo do filme, o espectador acompanha as fragilidades e enfermidades do protagonista. Tudo voltado para o humor sarcástico presente no roteiro. Quando Dick passa mal, a serenidade com que o personagem avisa que está tendo um enfarto é a constatação de um estudo aprofundado de Christian para o personagem. Mas o ponto de equilíbrio entre as nuances e camadas do protagonista é Amy Adams. A atriz empresta firmeza e determinação para Lynne. Se Dick não tivesse o apoio de uma mulher firme e determinada ao seu lado, o protagonista não seria vice-presidente dos Estados Unidos. Christian Bale é Amy Adams possuem sintonia e o filme cresce com a presença marcante do casal.

Adam Macky é um diretor autoral e que utiliza a montagem com protagonista em Vice. O elemento narrativo é fundamental para proporcionar ritmo a trama e enfatiza o humor para subtramas delicadas. A inserção de imagens aleatórias durante todo o filme pode transmitir a sensação de um completo caos. Um caos organizado que instiga o espectador. Um caos organizado que faz total sentido com o contexto proposto. Como o recurso é utilizado durante toda a narrativa, em alguns momentos o elemento narrativo quebra a sequência da trama, ou seja, existe uma pausa constante para que a montagem ganhe destaque. O elemento narrativo proporciona uma dupla função: ao mesmo tempo que impõe ritmo ao filme, ele também quebra a linha de raciocínio do espectador.



Impossível não mencionar o trabalho de maquiagem em Vice. No decorrer dos anos em que a trama é retratada Christian Bale tem o apoio fundamental para compor Dick muito em função desse recurso estético. Como é interessante e se faz extremamente necessário a junção dos dois elementos na trajetória do protagonista. A composição de Christian e a maquiagem entregam ao espectador o decorrer dos anos vivenciados por Dick. O mesmo acontece com a personagem de Amy Adams. A firmeza da atriz ao compor Lynne e o recurso estético da maquiagem caminham lado a lado. As mudanças no corte de cabelo da personagem e o envelhecimento pelos anos de intensa dedicação ao lado do marido são imprescindíveis para dar vida à mulher que muitas vezes esteve à frente do marido. 

Vice é um filme autoral que utiliza a montagem como protagonista para provocar um caos organizado no imaginário do espectador. Além do elemento narrativo fundamental para compor a trama, a função do narrador ganha mais intensidade no roteiro de Adam Mckay. Proporcionar ao narrador não somente a função de interagir com o espectador, mas também de estar presente em alguns momentos significativos da trama proporciona dinamismo no filme como um todo. Vice toca em assuntos marcantes para os Estados Unidos e o faz de forma direta. O filme envolve pelos elementos narrativos e coloca o dedo na ferida expondo os bastidores do jogo político mergulhado no caos organizado da montagem.

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