Pular para o conteúdo principal

O olhar imersivo de Ozon (O Amante Duplo)

Uma pergunta surge após a sessão de O Amante Duplo: se o filme fosse dirigido por outro diretor teria a mesma imersão do espectador? Provavelmente, não. Muitos são os elementos narrativos que fazem do recente filme de Ozon uma forte trama. Porém, o mais significativo é a autoria na direção. Ozon consegue logo no primeiro take convidar espectadores a acompanharem o suspense/ terror envolvendo Chloé. Além da direção, a duplicidade também sobressai nos primeiros minutos. O corte de cabelo da personagem reforça para o público que Chloé sofrerá transformações e com uma bela homenagem ao mestre do suspense Alfred Hitchcock, Ozon foca a troca de olhares entre a protagonista e espectador.

No começo do primeiro ato, a protagonista procura o psicólogo Paul, na tentativa de compreender o motivo pelo qual sentir fortes dores abdominais. Com o passar do tempo Paul decide dar alta para Chloé. Não por compreender que ela está curada, mas por questões éticas. Seus sentimentos ultrapassaram a relação profissional. Ambos decidem morar juntos e aos poucos a protagonista começa a descobrir segredos do companheiro. Um dos segredos que Paul esconde é a existência de um irmão gêmeo que também trabalha como psicólogo. Chloé marca uma consulta Louis e a trama ganha uma atmosfera que alterna gêneros. 

O roteiro de Ozon foca na temática da duplicidade. Irmãos gêmeos, o duplo sentimento da protagonista e as imagens duplicadas no reflexo dos espelhos presentes em várias cenas na trama. Ozon brinca com as imagens a todo momento com a intenção clara de ressaltar para o espectador variadas camadas dos personagens. Como espelhos refletem uma imagem invertida, tudo que o público vê em tela reforça a inversão das ações do trio. Tudo possui uma atmosfera duvidosa e o roteiro explora esse fator. As ações dos personagens movem a trama de forma intensa principalmente com a figura de Louis. A única personagem que não acrescenta em nada na trama é a vizinha de Chloé. O arco da personagem fica totalmente solto dentro do roteiro.


A fotografia e o design de produção reforçam a duplicidade da trama. Quando Chloé recebe a primeira ligação de Louis, a imagem presente em cena são vários troncos entrelaçados e contorcidos no teto do museu onde a protagonista trabalha. Um reflexo do comportamento e relacionamento turbulento que a personagem terá posteriormente nos demais atos. A duplicidade da fotografia contribui para contar um pouco mais sobre as personalidades dos irmãos. Paleta de cores quentes para Paul e cores frias para Louis.

As atuações auxiliam no envolvimento do espectador na trama. Marine Vacth lembra em alguns momentos Mia Farrow em O Bebê de Rosemary. A atriz proporciona também sensualidade extrema a protagonista, além do domínio de cena ao alternar momentos de fragilidade e firmeza. Já Jérémie Renier interpreta os irmãos de forma extrema, o que não deixa de ser clichê. Fixar a interpretação nos opostos parece a forma mais óbvia e cômoda de apresentá-los ao público, mas quando ambos dividem a cena o trabalho de Renier sobressai. A dupla consegue entregar momentos tensos e envolventes para o espectador.

Além dos elementos narrativos mencionados, o diferencial presente em O Amante Duplo é a forte autoria de François Ozon. Nos primeiros minutos de trama o espectador é impactamente inserido no suspense. Com firmeza ao retratar a trama e alternar gêneros, o diretor cria uma atmosfera tensa utilizando os reflexos dos espelhos e arcos do trio. Um crescente toma conta da tela com o abuso, no bom sentido, do terror. O Amante Duplo é uma trama envolvente graças ao olhar imersivo de Ozon.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...

Uma provável franquia (Histórias Assustadoras para Contar no Escuro)

Um grupo de amigos que reforça todos os estereótipos possíveis, a curiosidade que destaca os laços da amizade, uma lenda sobre uma casa assombrada e desaparecimentos constantes. Histórias Assustadoras para Contar no Escuro apresenta uma trama previsível repleta de referências à filmes  e séries lançadas recentemente como It: A Coisa e Stranger Things. É a velha cartilha de Hollywood: se deu bilheteria em um estúdio à tendência é repetir a dose. Apesar dos elementos e trama repetitivos, sempre vale a pena assistir novos atores surgindo e diretores principiantes com vontade de mostrar trabalho. É o que acontece neste filme produzido e roteirizado por Guilhermo Del Toro . Nada de muito inovador no gênero, o jumpscare reina, porém com o olhar criativo da direção e uma nova geração afiada, o filme ganha o envolvimento do espectador.  O roteiro gira em torno de um grupo de amigos excluídos que finalmente tomam coragem para enfrentarem os garotos mais valentes. Assustados, o ...