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Ausência de intensidade e impacto (Fahrenheit 451)


O que faz uma produção chamar a atenção do espectador? Atores que tiveram trabalhos marcantes em projetos anteriores? O remake de uma trama potencialmente envolvente? A marca de um canal conhecido por produções de alta qualidade repleta de premiações? Fahrenheit 451 possui todos os tópicos mencionados. Tem no elenco Michael Shannon e Michael B. Jordan. A trama é um remake moderno do clássico de Truffaut. E para completar é uma produção HBO. O que poderia dar errado? 

O que ganha o espectador nos primeiros momentos do filme é o design de produção. A tecnologia claramente inspirada em Blade Runner utiliza painéis para a comunicação com a população. A vigilância é constante e cabe ao protagonista acabar com qualquer resquício de arte, principalmente, os livros. Uma parte da população, mais conhecida como rebeldes, tenta preservar o conhecimento e as leituras de vários clássicos da literatura. Cabe ao bombeiro Guy Montang queimar todos os livros que os rebeldes tentam preservar. Claro que em algum momento Guy irá questionar suas atitudes. O roteiro explora o arco do personagem por meio de flashbacks. O espectador conhece um pouco da vida de Guy em momentos truncados da trama. E mesmo com o recurso narrativo utilizado, não fica claro para o público o arco completo do protagonista. O mesmo acontece com Capitão Beatty. Existem conflitos interessantes vividos pelo personagem, que faz anotações indagando o peso e consequência do trabalho que exerce imerso em filosofia. Personagens pouco desenvolvidos e um roteiro que não sabe ao certo que rumo tomar. Todos ficam à deriva.

É nítido a densidade e tensão criadas na atmosfera da trama. O equívoco maior é transformar essa densidade em um ritmo totalmente arrastado e tediante. O visual aproxima o espectador, mas a forma como a trama é conduzida e as pausas constantes para o leitura de trechos literários, ao invés de acrescentar ao roteiro, causam o distanciamento gradual do público. Fica nítido a total falta de conexão das tramas e subtramas propostas. O trabalho da montagem deixa claro a confusão existente dentro do roteiro. Quando temos conhecimento do arco dos personagens, os cortes exploram explicações científicas e logo em seguida apresentam os demais personagens que não acrescentam muito para o contexto proposto. Um pseudo romance entre Guy e Clarisse surge na metade do segundo ato, mas que se não existisse seria mais interessante, até porque o casal não possui química e os cortes não sugerem a aproximidade do casal. 


Mesmo com o esforço de Michael Shannon no papel de capitão responsável por comandar os bombeiros e atar fogo nas obras literárias, a composição do personagem é bem próxima de outros trabalhos realizados pelo ator. Já Michael B. Jordan parece totalmente apático em vários momentos e em cenas que exigem maior carga dramática. Sempre que o filme propõe uma imersão maior do personagem com flashbacks, o ator permanece com as mesmas feições durante todo o filme. Até nos momentos mais previsíveis do roteiro, não existe um impacto maior na atuação de Jordan. A impressão que se tem é de que o ator cresce quando trabalha com diretores que conseguem explorar seu potencial. O ator é competente, mas aqui o diretor Ramin Bahrani não conseguiu extrair o máximo da atuação que Jodan é capaz.

Fahrenheit 451 possui elementos que cativam o espectador. O desing de produção e algumas adaptações no decorrer da trama enriquecem a narrativa, porém, ao longo do filme os elementos narrativos se perdem no contexto proposto. O desenvolvimento do roteiro é fraco e a montagem deixa o ritmo extremamente arrastado e enfadonho. Não existe pulsão no terceiro ato e ao final da trama, pouco se sabe sobre os personagens e as motivações dos rebeldes em preservar o conhecimento. Fahrenheit 451 teria tudo para ser um filme, no mínimo, interessante. No plano das ideias poderia até ser, mas quando ganha vida pelas imagens, se perde no caminho por apresentar o resquício de algo que poderia ser mais intenso e impactante.

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