Pular para o conteúdo principal

O espectador é refém da sensibilidade dos protagonistas (Ferrugem e Osso)


Ferrugem e Osso, de Jaques Audiard, nos mostra a vida de Stéphanie (Marion Cotilard) e Alain (Matthias Schoenaerts) em seus respectivos empregos quando algo impactante os aproxima. O público não conhece muito do que aconteceu anteriormente ao fato que os uniu e esse aspecto só envolve ainda mais o espectador. O diretor apresenta poucas informações deixando as cenas falarem a todo o momento. 

Os protagonistas se encontram em uma boate onde Alain trabalha como segurança e separa ocasionalmente uma briga em que Stéphanie está envolvida.  Ele a leva para a casa e ambos trocam números para um possível contato. Uma tragédia ocorre no trabalho da protagonista e assim, mesmo sem uma atração existente, eles começam a se encontrar em determinados momentos marcados pela ausência que um sente do outro. Alain não vislumbra outra ocupação, mas sabe que pode ganhar mais dinheiro lutando. Um alimenta a necessidade do outro, nos momentos em que ambos querem se reencontrar utilizam um código, "OPÉ", uma simples desculpa que mais parece um novo recomeço para o casal. 

Alain tem um filho e não sabe como demonstrar seus sentimentos, a única maneira que encontra é a brutalidade. A violência é marca registrada, ele consegue extravasar sua raiva nas lutas e encontra aos poucos, na figura de Stéphanie, um motivo para expressar laços de ternura adormecidos. Jaques Audiard também produz e assina o roteiro. É claro o objetivo do diretor: fazer o espectador sentir todo o sofrimento dos envolvidos com poucas palavras. Um das cenas mais tocantes do filme, o lutador intensifica seus sentimentos com apenas duas frases. "Não me deixa" e "Eu te amo". Assim, de forma extremamente seca e objetiva, por telefone, não existe contato físico para carregar na dramaticidade da cena. Não há necessidade, neste momento, o espectador já está completamente imenso na dor dos envolvidos. 



A dor contida os acompanha durante todo o filme. O diretor em diversos momentos enfatiza com cortes abruptos a intensidade do sofrimento de ambos e também prolonga as cenas se necessário. Quando a protagonista toma conta da gravidade de sua situação, o momento é tocante , não dura muito, somente o necessário para que o espectador sinta junto com a personagem que aquele sentimento é extravasado, ele continua presente, mas é suavizado quando ela se sente livre ao nadar no mar ou em uma simples dança. Jaques tinha em suas mãos um roteiro que poderia facilmente carregar no melodrama, mas aqui cada cena fala por si, sem a necessidade de diálogos imensos que só fariam apelar para o sentimentalismo do espectador. Somos tocados com o pouco que é mostrado, seja quando a personagem visita seus antigos companheiros de trabalho ou se aproxima novamente das orcas, uma cena em que predomina o silêncio. Um silêncio sábio e que diz muito.

Ferrugem e Osso não é um filme comum, apesar de aparentar e trazer consigo os elementos que nos faz pensar de maneira simplória sobre ele. A dor está presente em todos os momentos, ela nunca deixa o espectador. Os sentimentos demonstrados de forma equivocada, ao final transbordam a sensibilidade adormecida que precisava vir à tona. E a melhor maneira é fazer o espectador ser refém dela.   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Entretenimento de qualidade (Homem-Aranha no Aranhaverso)

Miles Morales é aquele adolescente típico que ao grafitar com o tio em um local abandonado é picado por uma aranha diferenciada. Após a picada, a vida do protagonista modifica completamente. O garoto precisa lidar com os novos poderes e outros que surgem no decorrer da animação. Tudo estava correndo tranquilamente na vida de Miles, somente a falta de diálogo com o pai o incomoda, muito pelo fato do pai querer que ele estude no melhor colégio e tudo que o protagonista deseja é estar imerso no bairro do Brookling. Um dos grandes destaques da animação e que cativa o espectador imediatamente é a cultura em que o personagem está inserido. A trilha sonora o acompanha constantemente, além de auxiliar no ritmo da animação. O primeiro ato é voltado para a introdução do protagonista no cotidiano escolar. Tudo no devido tempo e momentos certos para que o público sinta envolvimento com o novo Homem-Aranha. Além de Morales, outros heróis surgem para o ajudar a combater vilões que dificultam s...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...