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Uma tocante inversão de papeis (Meu Anjo)


Marion  Cotillard é uma atriz extremamente versátil e firme em papeis dramáticos. O nome da atriz chama atenção em Meu Anjo, mas quem realmente rouba o filme é a pequena Ayline Aksoy- Etaix como Eli. Logo na primeira cena o espectador percebe a inversão de papeis entre mãe e filha. Marlène é a mãe, porém em todo o filme se porta como filha. É Eli que fica preocupada com a ausência da mãe que não retorna para casa, ela que canta para a mãe adormecer, ela que a acaricia e é ela que busca a todo momento a demonstração de carinho que a mãe não proporciona. Com a inversão total de papeis Marion propositalmente torna-se coadjuvante para que a pequena Ayline seja a protagonista da trama. 

Ao propor no primeiro ato a inversão de papeis para envolver o espectador na trama, a diretora Vanessa Filho utiliza planos que reforçam o olhar distante e repleto de mágoa de Eli. Sempre buscando a presença física da atriz, a diretora ressalta o estudo de personagem da garotinha de oito anos que mesmo querendo brincar tem somente como companhia a solidão e as bebidas. Eli é a reflexo da mãe que chega sempre tarde e totalmente embriagada. A protagonista reproduz o modelo que tem em casa e começa a beber. Não é a toa que a mãe em determinado momento do filme oferece espumante para a filha com o intuito da pequena somente "ver o mundo girar". Vanessa alterna o primeiro plano e enquadramentos fechados para destacar o envolvimento do espectador com a protagonista e evidencia o aprisionamento de Eli na solidão. Quando a pequena encontra Julio, a câmera de Vanessa proporciona planos abertos com uma clara referência a felicidade que Eli sente em ter finalmente uma figura paterna. A câmera fica mais solta e leve com momentos interessantes de descontração entre os personagens.

O destaque de Meu Anjo é a pequena Ayline que rouba o filme para si. Com um complexo estudo de personagem a atriz consegue envolver o público com uma atuação cativante e repleta de raiva. Na cena do quinto casamento da mãe, a atriz proporciona para Eli camadas profundas. É um turbilhão de emoções somente no olhar. O trabalho realizado com a atriz é de uma riqueza de detalhes que proporciona ao filme grandiosidade. Eli está feliz pela mãe, mas ao mesmo tempo insegura porque sabe que aquela felicidade não vai durar. Já Marion compreende perfeitamente a turbulência e inconsequência dos atos de Marlène. A atriz percebe que quem deve brilhar é a pequena Ayline e mesmo com essa percepção consegue transmitir força e segurança na atuação. A inversão de papeis se faz necessaria e Marion proporciona espaço para que a pequena atriz brilhe no decorrer do filme. Meu Anjo é um filme feminino,porém, a presença de Alban Lenoir proporciona leveza para a protagonista. Julio é a figura paterna de Eli. Uma esperança de afeto para a criança. O ator estabelece uma química com a atriz que simplesmente implora para não ficar só.  A presença do personagem é fundamental para a mudança de tom na trama. 


Dois elementos narrativos são de extrema importância em Meu Anjo: a direção de arte e o figurino. A direção de arte é reflexo do relacionamento conturbado entre mãe e filha. O apartamento onde Marlène e Eli moram é um caos completo. Garrafas de bebida espalhadas pela casa, roupas pelo chão e restos de comida em todos os cantos. Consequência da instabilidade emocional da mãe que literalmente abandona a filha alegando que ela já está crescida. O único local arrumado do apartamento é o banheiro repleto de perfumes e maquiagem. O local onde Marlène está sóbria e estável fisicamente. Os figurinhos são importantes para a trama e auxiliam na compreensão dos personagens. Marlène é observada de maneira preconceituosa por mães na escola de Eli porque vai levar a garotinha com um vestido de festa e salto alto. Quando Eli vai para uma boate vestida como adulta, o espectador observa a inconsequência da mãe. O figurino é parte fundamental da trama para a compreenssão dos personagens. 

Meu Anjo é uma dolorosa trama sobre inversão de papeis. A filha agindo o tempo todo como mãe. Um filme tocante que reforça a inconsequência e despreparo de Marlène que obviamente não possui a mínima condição emocional e vocação para ser mãe. A inversão de papeis é enfatizada pela câmera de Vanessa filho que busca o tempo todo a presença da pequena Ayline. O olhar de atriz em busca de afeto torna-se marca da protagonista. A carência é tamanha que Eli passa o perfume da mãe no intuito de sentir um pouco a presença de Marlène. Meu Anjo é uma tocante inversão de papeis.

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