Pular para o conteúdo principal

Somente Bergman consegue (Enquanto Houver Amor)


De tempos em tempos alguns diretores apresentam ao espectador uma trama voltada para um casal em crise que inevitavelmente acaba se separando. Recentemente tivemos História de Um Casamento. Mas o mestre Ingmar Bergman é que realmente sabia como ninguém retratar a temática, em Cenas de Um  Casamento. Porém, um diretor como Bergman é o que podemos classificar de Gênio. E gênios estão em outro patamar. Para os mêros mortais, após Noah Baumbach, agora é a vez de William Nicholson mostrar a sua versão do casamento e a crise do casal em Enquanto Houver Amor. 

William prepara o espectador ressaltando a atmosfera do casal. Pura rotina e diálogos automáticos que irritam profundamente Grace. A protagonista está presente na relação e como acontece em determinados filmes que abordam esta temática, ela é a que mais sofre com o divórcio. O distanciamento de Edward é nítido logo que observamos o personagem. Ele é a razão que alerta a esposa pelo fato do relacionamento nunca ter existido e que ele precisa seguir em frente. Já Grace é a emoção que sofre e praticamente deixa de viver após o "abandono" do marido. William foca na protagonista e nas fases que ela passa para superar o divórcio. A princípio existe a negação e até o final do segundo ato Grace ainda acredita que o marido irá voltar. A aceitação é o processo mais doloroso da personagem e com ele vem à depressão. Seguir em frente é uma opção encontrada por Grace com a companhia do cachorro que ela carinhosamente chama de Edward. O marido consegue lidar melhor também pelo fato de estar se permitindo amar. A balança não está equilibrada. Na realidade cabe ao filho tentar equilibrá-la. Porém, Jamie também precisa equilibrar a vida emocional. William segue com o roteiro explorando os conflitos internos do trio. O arco de Annette Bening é o que ganha prioridade, as camadas da protagonista avançam à medida que ela passa a aceitar a separação. 


As interpretações envolvem o espectador de uma forma tocante e sincera. Annette Bening entrega uma protagonista repleta de indagações, conflitos e rancor. O filme é todo da atriz que intensifica principalmente a camada voltada para a depressão de Grace. A transição para a aceitação também evidencia o ótimo trabalho de Annette. Bill Nighy apresenta um personagem introspectivo e a linearidade das camadas acompanha Edward durante o longa. Os opostos são apaziguados pelo trabalho de Josh O´Connor que fica literalmente no meio da relação, ou no que restou dela, proporcionando o equilíbrio entre pai e mãe. Além das atuações, vale destacar o figurino de Grace que acompanha a protagonista nas fases da separação. Existe uma quebra nítida no estágio de depressão com um figurino neutro, já na fase da superação cores mais vivas refletem a nova fase da personagem. O casaco vermelho marca o período feliz do casamento quando o filho ainda era pequeno. O mesmo figurino surge na nova fase de superação de Grace. 

William destaca um lado em detrimento do outro e demonstra para o espectador que cada um sente as dores da separação de formas distintas. Edward possui a serenidade de seguir em frente, pois ancôra a dor em outro amor e no apoio do filho. Grace é a que sente a separação porque se doou completamente para uma relação de três décadas. Em todos os cantos da casa ela observa e sente a presença do marido. O equilíbrio chega tardiamente perto do desfecho do longa. Após refletir sobre a temática fica o questionamento: Por que a mulher quase sempre é a personagem que sente mais a separação? É ela que ganha o status de vilã, de intensa, que joga a mesa no chão para provocar o marido? Ah, essa questão de equilíbrio total entre masculino e feminino pertence ao Gênio Bergman. 

  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Entretenimento de qualidade (Homem-Aranha no Aranhaverso)

Miles Morales é aquele adolescente típico que ao grafitar com o tio em um local abandonado é picado por uma aranha diferenciada. Após a picada, a vida do protagonista modifica completamente. O garoto precisa lidar com os novos poderes e outros que surgem no decorrer da animação. Tudo estava correndo tranquilamente na vida de Miles, somente a falta de diálogo com o pai o incomoda, muito pelo fato do pai querer que ele estude no melhor colégio e tudo que o protagonista deseja é estar imerso no bairro do Brookling. Um dos grandes destaques da animação e que cativa o espectador imediatamente é a cultura em que o personagem está inserido. A trilha sonora o acompanha constantemente, além de auxiliar no ritmo da animação. O primeiro ato é voltado para a introdução do protagonista no cotidiano escolar. Tudo no devido tempo e momentos certos para que o público sinta envolvimento com o novo Homem-Aranha. Além de Morales, outros heróis surgem para o ajudar a combater vilões que dificultam s

Um pouquinho de Malick (Oppenheimer)

Um dos filmes mais intrigantes que assisti na adolescência foi Amnésia, do Nolan. Lembro que escolhi em uma promoção de "leve cinco dvds e preencha a sua semana". Meus dias foram acompanhados de Kubrick, Vinterberg e Nolan. Amnésia me deixou impactada e ali  percebi um traço importante na filmografia do diretor: o caos estético. Um caos preciso que você teria que rever para tentar compreender a narrativa como um todo. Foi o que fiz e  parece que entendi o estudo de personagem proposto por Nolan.  Décadas após o meu primeiro contato, sempre que o diretor apresenta um projeto, me recordo da época boa em que minhas preocupações eram fórmulas de física e os devaneios dos filmes. Pois chegou o momento de Oppenheimer, a cinebiografia do físico que carregou o peso de comandar a equipe do Projeto Manhattan,  criar a bomba atômica e "acabar" com a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria já havia começado entre Estados Unidos e a Alemanha, no quesito construção da bomba, a ten

Rambo deseja cavalgar sem destino (Rambo: Até o Fim)

Sylvester Stallone ainda é o tipo de ator em Hollywood que leva o público aos cinemas. Os tempos são outros e os serviços de streaming fazem o espectador pensar duas vezes antes de sair de casa para ver determinado filme. Mas com Stallone existe um fator além da força em torno do nome e que atualmente move a indústria: a nostalgia. Rambo carregava consigo traumas da Guerra do Vietnã e foi um sucesso de bilheteria. Os filmes de ação tomaram conta dos cinemas e consagraram de vez o ator no gênero. Quatro décadas após a estreia do primeiro filme, Stallone resgata o personagem em Rambo: Até o Fim. Na trama Rambo vive uma vida pacata no Arizona. Domar cavalos e auxiliar no trabalho da policial local é o que mantém Rambo longe de certos traumas do passado. Apesar de tomar remédios contralodos, a vida beira a rotina. O roteiro de Stallone prioriza o arco de Gabriela, uma jovem mexicana que foi abandona pelo pai e que vê no protagonista uma figura paterna. No momento em que Gabriela d