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Tenho um longo caminho pela frente (Saint Maud)


Não me recordo exatamente o ano que assisti O Exorcista, mas lembro de cada cena e o medo que crescia à medida que a garotinha era possuída pelo demônio. O tempo passou e o trauma continuou. Sei que filmes do gênero terror provocam incômodo como parte fundamental da experiência, porém, sempre foi prejudicada justamente pelo Medo. O medo me tirava completamente da imersão. Eu cerrava os olhos e não conseguia ver mais nada. Filmes de terror com viés religioso sempre foram o meu calcanhar de Aquiles. O Exorcista marcou minha relação com o gênero e até hoje fico com receio em assistir filmes com essa temática. Tenho tentado me envolver na experiência e de uns tempos para cá o terror psicológico é uma verdadeira tentação, no bom sentido, dentro do gênero. Trocadilhos à parte, Saint Maud é um filme com o viés religioso que vai além e provoca o espectador de diversas formas intensificando o terror psicológico vivido por Maud.

Após sofrer um trauma cuidando de um paciente, a jovem enfermeira Maud começa a trabalhar como cuidadora particular. Ela cuida de Amanda que foi uma bailarina famosa e está morrendo aos poucos. A jovem protagonista entende que é um sinal divino salvá-la. O roteiro mostra com poucos e rápidos flashbacks o passado da protagonista, porém o foco é a relação entre as personagens. Sempre que Amanda tem uma recaída no tratamento, Maud acredita que o motivo é a falta de fé. Como consequência o roteiro explora vários questionamentos que envolvem o espectador no martírio da protagonista. As punições são angustiantes como queimar a mão e confecionar uma palmilha de tênis de pregos. Ver a personagem caminhar com o tênis sentido a dor como uma forma de prazer é incômodo. Além da dor física, o roteiro questiona a fragilidade e falta de auto estima de Maud. Ao ceder às tentações carnais, as punições a levam ao extremo. O roteiro levanta algumas perguntas que permanecem até o desfecho do filme: Seria tudo uma alucinação ou realidade? O fanatismo que cega é válido em nome da prática do "bem"? Até que ponto pessoas ao redor da protagonista a instigam para continuar com um comportamento doentil? 

O fanatismo religioso que permeia a narrativa é interpretado de forma competente pela atriz Morfydd Clark. O olhar perdido e ao mesmo tempo melancólico da atriz contribuem para que o terror psicólogo impulsione a trama. Clark reforça o fanatismo da protagonista ao mesmo tempo que expõe uma fragilidade e carência que provocam a imersão do espectador. Já Jennifer Ehle é a própria tentação dos prazeres da vida. Luxuria e vaidade. Algumas das características marcantes da personagem que proporcionam um duelo interessante entre o "bem" e o "mal". A tensão aumenta gradativamente graças ao trabalho da dupla.

A direção de Rose Glass é certeira ao criar a atmosfera do tormento de Maud. Planos fechados intensificam o terror psicológico e closes reforçam as atuações de Clark e Ehle.  Um elemento narrativo que Rose explora de forma intensa é a direção de arte. A casa de Ehle é banhada por uma atmosfera pesada e repleta de tensão. Já o apartamento de Maud é  extremamente pequeno ressalta o fanatismo religioso. O que basta para a protagonista é um local repleto de imagens para oração. Outro destaque fica por conta da trilha sonora com um som que causa incômodo. Em outros momentos o elemento só reforça o jump scare. O que dizer da fotografia? O elemento com paletas quentes auxilia na atmosfera e na interpretação da dupla principal. O desfecho é banhado por luz e sombra dialogando com o antagonismo do bem e mal. E caro leitor, o desfecho deixei para assistir no dia seguinte de manhã. Ainda tenho um longo caminho pela frente até chegar à imersão total do gênero.


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