Pular para o conteúdo principal

Um filme que supera obstáculos (Morto Não Fala)


O cinema de gênero no Brasil tem vários obstáculos para enfrentar além dos demais gêneros.  As comédias sobressaem e quando um filme como Morto não Fala estreia a corrida para superar barreiras se inicia. Driblar o gosto do espectador por filmes blockbusters estrangeiros e, posteriormente, os comerciais brasileiros. O espectador que opta por um filme de gênero pode ter uma grata surpresa. É  o que acontece com o mais recente trabalho do diretor Dennison Ramalho. Além da autoria de Dennison, o filme apresenta ao público um trabalho rico nos demais elementos narrativos. 

O cuidado de Dennison ao trabalhar a atmosfera e a gradação do terror brincado com o gênero é intenso e marcante entre os atos. No primeiro ato existe um ritmo mais lento para apresentar os personagens, mas um aspecto logo é explorado: o fato de Stênio trabalhar no IML e falar com os mortos. A comunicação  é  imediata e atrai em cheio o espectador. O ambiente de trabalho do protagonista gera um clima frio e perturbador que já situa o espectador na tensão entre os personagens. Ao escutar uma confissão de um morto que conhece o protagonista, Stênio toma uma atitude que gera várias consequências e entrelaçam as ações dos personagens. Após a confissão, Dennison brinca com as emoções espectador. No ambiente de trabalho e na casa do protagonista a tensão só aumenta com o trabalho da câmera na mão sempre acompanhando as ações dos personagens. O primeiro plano e closes também são explorados principalmente após descobertas de Stênio com relação à mulher e os filhos. Os enquadramentos fechados transmitem a sensação de sufocamento e apreensão do protagonista e auxiliam constantemente no terror psicológico de Stênio. O domínio do diretor ao criar a atmosfera durante todo o filme reforça o envolvimento do espectador na trama. 

Além do ótimo trabalho na direção, o roteiro apresenta viradas importantes na trama em momentos cruciais. Após a descoberta de Stênio, as consequências do protagonista geram sucessivos momentos de tensão e alternância  dentro do gênero terror. O roteiro brinca com a possessão dos personagens e o psicológico de Stênio de forma homeopática. Aos poucos o roteiro insere momentos de alucinação e realidade instigando ainda mais o espectador. Objetos cênicos proporcionam plot twists e aspectos que parecem simplórios movem consideravelmente às ações do protagonista. Uma tatuagem, uma espinha que some do IML e um anel, são objetos cênicos que interligam ações bem amarradas entre os núcleos da trama. Cada morto que estabelece um diálogo com Stênio influencia diretamente nas ações que o protagonista toma no fim do primeiro ato. O desfecho é de uma tensão necessária, pois não implica somente na questão da alternância do gênero, mas também na confissão do protagonista. A atitude do protagonista é reflexo do arco psicológico que move boa parte da trama. Os demais personagens contribuem e sustentam a tensão durante o filme. O fato de Lara ser evangélica reforça o programa de possessão na TV. Tudo no roteiro apresenta uma conexão para a compreensão dos arcos dos personagens. O protagonista repleto de camadas intensifica a presença dos demais coadjuvantes. O filho ganha relevância por não saber lidar com o luto da mãe, e assim, o tormento de Stênio ganha outras proporções. O roteiro consegue trabalhar a riqueza dos personagens e como suas ações interferem diretamente nas atitudes do protagonista. Ligações bens trabalhadas que envolvem o espectador.


Dennison trabalha com um elenco extremamente competente repleto de camadas que movem a trama. A compreensão  de cada personagem pelos atores aumenta a tensão no filme. Daniel de Oliveira  apresenta um desconforto logo no primeiro ato por falar com os mortos. Apesar dos primeiros diálogos apresentarem um tom cômico, o ator sempre apresenta uma tensão  no olhar. O cheiro do protagonista gera conflitos dentro de casa e Daniel imprime um desconforto com a situação que sofre constante gradação durante todo o filme. A tensão natural dentro de casa transforma-se em um terror psicológico que o ator domina de forma intensa. Fabiula Nascimento move boa parte da trama com Odete. O espírito possessor da personagem auxilia no terror e acrescenta momentos intensos de alternância no gênero. Já Bianca Comparato apresenta uma leveza e dialoga com o sofrimento e luto que Stênio vive. O amparo da personagem é fundamental para que Stênio não surte de vez.

Para que um filme de gênero funcione e envolva o espectador os elementos narrativos precisam auxiliar na trama. Em Morto Não Fala a trilha sonora, fotografia e direção de arte ganham destaque. Com a direção firme de Dennison, a trilha acrescenta de forma intensa na construção da atmosfera. A fotografia ressalta em vários momentos de transição  nas camadas do protagonista. A paleta de cores frias instiga e ressalta na tensão presente no drama psicológico do protagonista. O cuidado do design de produção ao destacar elementos simplórios, mas que são responsáveis pelas reviravoltas constantes na trama. A tríade auxilia na direção e na composição dos arcos dos personagens. Um filme de gênero que apresenta uma nova vertente do cinema nacional. Morto não fala supera obstáculos e apresenta ao espectador um filme de gênero com qualidade. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Entretenimento de qualidade (Homem-Aranha no Aranhaverso)

Miles Morales é aquele adolescente típico que ao grafitar com o tio em um local abandonado é picado por uma aranha diferenciada. Após a picada, a vida do protagonista modifica completamente. O garoto precisa lidar com os novos poderes e outros que surgem no decorrer da animação. Tudo estava correndo tranquilamente na vida de Miles, somente a falta de diálogo com o pai o incomoda, muito pelo fato do pai querer que ele estude no melhor colégio e tudo que o protagonista deseja é estar imerso no bairro do Brookling. Um dos grandes destaques da animação e que cativa o espectador imediatamente é a cultura em que o personagem está inserido. A trilha sonora o acompanha constantemente, além de auxiliar no ritmo da animação. O primeiro ato é voltado para a introdução do protagonista no cotidiano escolar. Tudo no devido tempo e momentos certos para que o público sinta envolvimento com o novo Homem-Aranha. Além de Morales, outros heróis surgem para o ajudar a combater vilões que dificultam s

Um pouquinho de Malick (Oppenheimer)

Um dos filmes mais intrigantes que assisti na adolescência foi Amnésia, do Nolan. Lembro que escolhi em uma promoção de "leve cinco dvds e preencha a sua semana". Meus dias foram acompanhados de Kubrick, Vinterberg e Nolan. Amnésia me deixou impactada e ali  percebi um traço importante na filmografia do diretor: o caos estético. Um caos preciso que você teria que rever para tentar compreender a narrativa como um todo. Foi o que fiz e  parece que entendi o estudo de personagem proposto por Nolan.  Décadas após o meu primeiro contato, sempre que o diretor apresenta um projeto, me recordo da época boa em que minhas preocupações eram fórmulas de física e os devaneios dos filmes. Pois chegou o momento de Oppenheimer, a cinebiografia do físico que carregou o peso de comandar a equipe do Projeto Manhattan,  criar a bomba atômica e "acabar" com a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria já havia começado entre Estados Unidos e a Alemanha, no quesito construção da bomba, a ten

Rambo deseja cavalgar sem destino (Rambo: Até o Fim)

Sylvester Stallone ainda é o tipo de ator em Hollywood que leva o público aos cinemas. Os tempos são outros e os serviços de streaming fazem o espectador pensar duas vezes antes de sair de casa para ver determinado filme. Mas com Stallone existe um fator além da força em torno do nome e que atualmente move a indústria: a nostalgia. Rambo carregava consigo traumas da Guerra do Vietnã e foi um sucesso de bilheteria. Os filmes de ação tomaram conta dos cinemas e consagraram de vez o ator no gênero. Quatro décadas após a estreia do primeiro filme, Stallone resgata o personagem em Rambo: Até o Fim. Na trama Rambo vive uma vida pacata no Arizona. Domar cavalos e auxiliar no trabalho da policial local é o que mantém Rambo longe de certos traumas do passado. Apesar de tomar remédios contralodos, a vida beira a rotina. O roteiro de Stallone prioriza o arco de Gabriela, uma jovem mexicana que foi abandona pelo pai e que vê no protagonista uma figura paterna. No momento em que Gabriela d