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Somos um personagem de Black Mirror? (Black Mirror: Bandersnatch)


A Netflix domina o mercado de streaming, pelo menos até a Disney lançar o próprio serviço ainda em 2019. Analisando a concorrência de mercado e vendo sua liderança ameaçada, a Netflix precisa inovar para não perder assinantes. Teremos uma briga interessante nos próximos anos. Visando a inovação o serviço lança no catálogo uma novidade: Bandersnatch, um filme interativo onde o espectador decide os rumos da trama. Na trama, Stefan é um jovem introspectivo que cria um jogo como base principal a interação dos jogadores. Podemos observar a questão da metalinguagem permeando todo o filme. Stefan tem como inspiração o livro Bandersnatch que também provoca a interação com o leitor. Ao ser contratado pela empresa que financia a produção dos jogos, o protagonista tem apenas quatro meses para finalizar o projeto. Nesse período, o espectador decide as mais variadas opções para conduzir a trama. 

O primeiro ato consiste em opções simples como escolher entre dois cereais e a trilha que o protagonista irá escutar. Por sinal, a trilha é um dos elementos narrativos mais interessantes do filme. Somente com o intuito de instigar o espectador na interatividade, a simplicidade das opções é voltada para entreter o espectador e não causa verdadeiro impacto na trama. Entre uma escolha é outra, o espectador (ou seria jogador?) percebe que Stefan possui um trauma no passado e que a relação com o pai é praticamente inexistente. A medida que as opções avançam o roteiro Charlie Brooker envolve o espectador por opções mais significativas. Decidir se Stefan vai aceitar o emprego, provocar uma briga com o pai e ir ao psiquiatra. São escolhas que o público decide, mas ao longo das decisões percebemos que quem sempre esteve no comando era Charlie. A medida que a trama avança, dependendo da escolha, ela retorna para uma "nova chance" com intuito de escolhermos a opção que proporciona continuidade ao estudo de personagem de Stefan. Independente das opções, o que Charlie consegue fazer no roteiro é explorar a aura que muitos espectadores buscaram ao experimentar a interatividade presente no filme. A aura da série Black Mirror. Stefan mergulha na paranoia de entregar no prazo o jogo e no decorrer das opções percebemos que o protagonista se perde em um universo extremamente obscuro voltado para a tecnologia. Questionamentos surgem e logo o espectador percebe que se trata de mais um episódio, desta vez, um filme interativo de Black Mirror.  Se por um lado as opções instigam a interatividade, por outro sabemos muito pouco dos personagens. O que é uma pena principalmente para o trabalho de Will Poulter como Colin. O personagem é de longe o melhor de Bandersnatch e não ter uma opção para saber mais sobre ele enfraquece o roteiro. O mesmo acontece com os demais personagens da trama. Por ser um filme de opções rápidas, os personagens ficam vazios dentro do universo de Stefan. O mesmo acontece Petter e Dr. Haynes. Assim como as opções são feitas em questão de segundos, os personagens transitam pela trama somente com a função de reforçar as decisões feitas pelos espectadores. Ter cinco finais alternativos é um brinde para uma trama que não desenvolve o arco por completo dos personagens. 

Ser do universo Black Mirror conquistou boa parte dos espectadores pela temática dos epsódios e ao introduzir a questão da interatividade Bandersnatch torna-se ainda mais atrativo aos olhos de quem assiste. Mas até que ponto vai a interação do espectador? Ao longo do filme percebemos que o conceito de Black Mirror sempre esteve presente. A ilusão de estar no comando proporciona ao espectador a sensação de conduzir as atitudes de Stefan. No momento que decidi que o protagonista iria recusar o emprego tive a ilusão de que a trama tomaria outro viés. Porém, a decisão foi somente para que o protagonista trabalhasse em casa. Ou seja, a outra opção daria continuidade para uma única vertente da trama: fazer o jogo. Neste momento, como espectadora, percebi que o conceito de Black Mirror estava bem na minha frente e uma indagação surgiu: eu tinha o poder de conduzir a trama ou ela me conduzia? Com os rumos estabelecidos e a falsa ilusão que de eu estava no comando de uma trama que teria soluções estabelecidas, não hesitei em somente ver até que ponto eu seria conduzida. Afinal de contas, não é esse o objetivo de Black Mirror? Questionar o espectador e indagar sobre conflitos envolvendo a tecnologia? Bandersnatch proporciona uma falsa ilusão de comando no espectador, o que não deixa de ser interessante e faz total sentido no universo da série. Passada a frustração, ou melhor, a compreensão de que somos um personagem de Black Mirror, o espectador que é iludido e acredita estar no comando, o filme proporciona no fim das contas somente o atrativo da falsa interação. Uma ilusão fabricada como é a realidade virtual, onde tudo não passa de mera ilusão. 


Os elementos narrativos que envolvem e auxiliam na narrativa são atrativos no decorrer das opções selecionadas. A fotografia de paletas escuras no quarto de Stefan reflete perfeitamente o isolamento e a paranoia que o protagonista sente entre os atos. Dependendo das opções a interação é voltada para a quebra da quarta parede, o que reflete ainda mais a paranoia do personagem. O design de produção também reforça o caos instalado na mente do protagonista. O quarto bagunçado voltado somente para a realização do jogo instaura ainda mais o caos na vida do protagonista. A trilha sonora ao introduzir o personagem é mais suave e aos poucos torna-se mais densa dependendo das "escolhas" dos espectadores. E o que dizer da montagem? Sem ela a proposta não faria sentido. 

A Netflix sai na frente dos demais serviços para atrair o espectador no intuito de fazê-lo permanecer como assinante da plataforma. Mas Bandersnatch é realmente uma inovação? Quando percebi no começo do segundo ato que na realidade eu estava sendo uma marionete como Stefan e tudo não passava de ilusão, me contentei em fazer parte do universo da série. Questionamentos surgiram quando o click foi instalado: Vou me deixar conduzir? Vou sentir uma falsa ilusão de que estou no comando da trama? Stefan e eu (como espectadora) estamos no mesmo filme? Nós somos o protagonista? Deixo me levar pela falsa sensação de influenciar diretamente nos rumos da trama? Qual a necessidade de cinco finais sendo que em momentos cruciais eu não estava verdadeiramente no comando? Bandersnatch é um filme com a marca Black Mirror. Com a aura de Black Mirror. E com uma vertente a mais : o espectador é um personagem no universo de Black Mirror.

Comentários

Daniela disse…
Amei sua crítica. Concordo totalmente e inclusivei achei que a sua crítica me foi muito mais provocativa (pro lado bom) do que o próprio filme. Parabéns!
Paula Biasi disse…
Dani,a crítica amplia nosso olhar. Volte sempre😌

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