Pular para o conteúdo principal

No coração do espectador (Benzinho)


Sabe quando sua mãe lhe pede algo e você não dá a mínima importância? Segundos após o pedido, ela começa a gritar com você. Você faz aquela cara de descontentamento e fica sem compreender nada. Essa cena e outras tantas são o reflexo do cotidiano de várias famílias brasileiras. A minha e a sua. E ela está em Benzinho. O grande trunfo do filme de Gustavo Pizzi é priorizar o cotidiano de Irene, o marido e os quatro filhos. A protagonista fica sabendo que o filho mais velho recebeu um convite para jogar handebol na Alemanha. Após o choque, a família se mobiliza com as papeladas e burocracia para que o primogênito possa seguir um sonho. Além de lidar com as emoções da viagem do filho, Irene precisa ajudar a irmã Sônia que mantém distância do marido violento e dependente químico. 

Por retratar de maneira leve e sensível o cotidiano de qualquer família que passa por dificuldades, um dos elementos narrativos que mais chama atenção em Benzinho é o roteiro de Gustavo Pizzi e Karine Teles. A trama principal, Irene tentando lidar com o afastamento do filho, torna-se um complemento de várias subtramas que ganham força entre os atos. A batalha de Irene para concluir o ensino médio reforça no roteiro o preconceito e diferenças de classes sociais. Os diálogos de Irene e Klaus são reflexo da crise econômica do país. O marido sonhador e a mulher apoiando, mas sempre deixando claro que não quer ficar em casa agora que formou. Destaque também para o arco de Sônia que reforça os questionamentos sobre um grave problema que aumenta consideravelmente no país: a violência doméstica. A cada cena o roteiro explora assuntos relevantes que envolvem o espectador. Inevitável a sensação de estarmos imersos e que cada espectador se veja em Irene, Klaus e Sônia. Essa empatia faz do roteiro de Benzinho atemporal.

Benzinho tem um roteiro envolvente e redondo explorando de forma intensa todos os arcos dos personagens, mas o que potencializa ainda mais a narrativa é a atuação do trio central. Karine Tales interpreta Irene como uma mulher batalhadora que ama imensamente cada filho. A atriz consegue atingir a linha tênue entre a naturalidade e a composição intensa da personagem. Por transmitir a naturalidade proposital para que o espectador se identifique é difícil distinguir essa linha. Mas vemos em cada gesto e olhar a composição madura de Karine. O fato da atriz também escrever o roteiro intensifica a aproximidade da atriz com a protagonista. A naturalidade também é o destaque de Klaus que abre os braços para os filhos. Após dividir um doce com um deles, logo em seguida reforça a preocupação por ele estar comendo além da conta. Uma cena que demonstra zelo com toques de humor. Otávio Müller consegue alternar sensibilidade e drama. O lado sonhador do pai transparece ao mesmo tempo a preocupação pela falta de perpespectiva com o atual emprego. Já Sônia é interpretada com firmeza por Adriana Esteves que a cada personagem demonstra versatilidade e competência na interpretação. Apesar da dificuldade do relacionamento com o marido, a atriz ressalta o carinho e preocupação em uma cena chuvosa e tocante. O trio possui camadas exploradas de forma intensa pelo atores.




A direção de arte é um elemento narrativo que intensifica a naturalidade e o cotidiano da família. Cada detalhe nos cômodos casa, a mesa pequena da cozinha que sempre tem lugar para mais um, as rachaduras aparecendo e a escada que serve de entrada para a casa enquanto um contratempo sempre sobressai a outro tornando tardio o conserto na entrada. Um destaque importante é a kombi que transporta a família para a casa de praia. A kombi também serve para o trabalho de Sônia que vende marmitas. O automóvel velhinho ajuda um bocado nas mudanças da família. A edição proporciona um ritmo cadenciado transportando para a tela o tempo necessário para que cada subtrama e temática central aconteça de forma natural refletindo o cotidiano.  

Benzinho causa empatia imediata no espectador por possuir um roteiro caucado na realidade de muitas famílias brasileiras. A união em meio aos contratempos que não param de acontecer. Problemas de encanamento, o filho do meio que fica um pouco de lado quando a atenção é voltada para os demais, a tia que sofre de violência doméstica, a roupa que não serve para um filho mais veste direitinho o primo menore o enorme coração de mãe que fica com a emoção dividida quando um filho vai embora e o outro faz uma apresentação na banda. Cada personagem faz de Benzinho um filme atual e tocante que atinge em cheio o coração do espectador. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Entretenimento de qualidade (Homem-Aranha no Aranhaverso)

Miles Morales é aquele adolescente típico que ao grafitar com o tio em um local abandonado é picado por uma aranha diferenciada. Após a picada, a vida do protagonista modifica completamente. O garoto precisa lidar com os novos poderes e outros que surgem no decorrer da animação. Tudo estava correndo tranquilamente na vida de Miles, somente a falta de diálogo com o pai o incomoda, muito pelo fato do pai querer que ele estude no melhor colégio e tudo que o protagonista deseja é estar imerso no bairro do Brookling. Um dos grandes destaques da animação e que cativa o espectador imediatamente é a cultura em que o personagem está inserido. A trilha sonora o acompanha constantemente, além de auxiliar no ritmo da animação. O primeiro ato é voltado para a introdução do protagonista no cotidiano escolar. Tudo no devido tempo e momentos certos para que o público sinta envolvimento com o novo Homem-Aranha. Além de Morales, outros heróis surgem para o ajudar a combater vilões que dificultam s...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...