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Charlotte e Hannah (Hannah)


A câmera acompanha Charlotte Rampling a todo momento e quem ganha é o espectador. Com um das melhores atuações de sua carreira, a atriz conduz várias camadas internas para o estudo de personagem de Hannah. O poder na atuação de Charlotte nos faz refletir se Hannah teria força nas mãos de outra atriz. Acredito que não. Sabe aquele papel escrito especialmente para determinada atriz? No começo do segundo ato, quando o espectador já está familiarizado com Charlotte e suas andanças de metrô, não existem dúvidas de que Hannah é Charlotte e Charlotte é Hannah. Aquele ar melancólico, com um olhar vazio que demonstra a ausência de vida atinge como um turbilhão de emoções no espectador. Somente uma atriz do tamanho de Charlotte para conseguir essa imersão na trama.

O que fascina em Hannah é acompanharmos o cotidiano da protagonista que tenta sobreviver carregando o mundo nas costas, mas deixando claro no ambiente de trabalho que tudo está em perfeita ordem. O cotidiano envolve o espectador porque Charlotte humaniza Hannah. A atriz tenta dar sentido para a vida nas atividades fora do ambiente de trabalho. As aulas de teatro são os batimentos do coração sofrido da protagonista que insiste em encontrar sentido quando já não se têm alternativas. O metrô chega, mas a personagem desiste de entrar no vagão. Tardar a chegada em casa é mais reconfortante do que ter a companhia de um marido ausente. Não é à toa que as primeiras imagens do marido e cachorro são desfocadas. Uma metáfora interessante sobre a solidão da protagonista. Ela está acompanhada pelo animal e o marido, mas a imagem é reflexo direto do sentimento da protagonista. A trama é repleta de simbolismos e metáforas para expressar o vazio de Hannah.

O diretor Andrea Pallaoro explora exaustivamente a persona da atriz e quem ganha é o espectador com um trabalho minimalista e primoroso. A câmera do diretor em alguns planos corta propositalmente o rosto da atriz para instigar o público. Mesmo sem enxergarmos o rosto de Charlotte temos a certeza de que o olhar da atriz ao atender o telefone transborda emoção. Andrea sabe do potencial da atriz e não mede esforços para que a câmera acompanhe cada passo da protagonista.


Os elementos narrativos auxiliam na solidão e vazio de Hannah. A direção de arte explora um apartamento com predominância para tons escuros e cinza. O que dialoga perfeitamente com o figurino da personagem. A protagonista utiliza lenços mais claros quando tenta buscar um sentido para a vida. Quando vai às aulas de teatro, para a natação ou para a festa do neto que o filho faz questão de não manter contato. Outro elemento que reforça o distanciamento entre neto e avó é o plano que Andrea foca Charlotte atrás das grades da escola. O aprisionamento dos coadjuvantes reflete também na protagonista. A paleta de cores da fotografia destaca a solidão da protagonista com cores frias. Hannah faz questão de deixar a luz entrar nas casas em que trabalha, mas seu apartamento é abafado e escuro.

No decorrer dos atos, o filme praticamente mudo de Andrea ganha força nas imagens e na edição de som. A cada plano o roteiro também do diretor reforça as semelhanças do texto teatral que Hannah precisa decorar com a vida real. Hannah decora falas de um casamento inesistente, enquanto na vida real, a protagonista precisa interpretar para o marido preso que os familiares sentem falta e que o neto lhe acolheu muito bem. Esse jogo entre a dramaturgia e a vida real é explorado perfeitamente no roteiro. Mas uma vez o espectador se transporta para a tela. Quem nunca foi ator para aliviar o sofrimento alheio, enquanto morremos aos poucos sentindo o verdadeiro sofrimento?

Hannah é Charlotte. Charlotte é Hannah. As duas são umá só. Acompanhar um período curto da vida da protagonista e saber somente o necessário para compreender que Hannah poderia ser facilmente qualquer mulher que tenta viver, mesmo que a vida seja enfrentar obstáculos. Nadar, descer escadas infinitas, cuidar de uma criança para sentir o retorno do afeto e buscar reviver. Seguir em frente. São várias dualidades: Morrer e renascer. Cotidiano e solidão. Ficção e realidade. Charlotte e Hannah.

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