Pular para o conteúdo principal

Um quarteto visceral (Gritos e Sussurros)


Gritos e Sussurros não é um filme de fácil compreensão. Ele é um belo e premiado exemplo de uma narrativa sensorial. O sofrimento de Agnes atinge de forma crua o público. A cada grito da protagonista a sensação de incômodo permanece e acompanha o espectador. O pouco que sabemos do quarteto é ressaltado pelas imagens. A ausência de diálogos se faz presente, pois em determinado momento, Bergman mostra que o poder inserido nas imagens dialoga perfeitamente na narrativa. Pelas imagens, o espectador compreende o necessário para acompanhar o tormento psicológico do quarteto.

Além do poder inserido nas imagens, outros elementos narrativos fazem de Gritos e Sussurros um filme impactante. O roteiro de Bergman separa a vida das quatro protagonistas de forma equilibrada. O pouco que é abordado no roteiro do diretor basta para que o impacto entre personagens e espectador seja estabelecido. Liv Ullman interpreta Maria com sensualidade. A personagem sempre está em busca de afeto. Seja ao tentar conversar com Karin ou ao se entregar para David. Karin que possui problemas com toque e afeto é a mais fria das irmãs. A personagem alterna momentos de sensibilidade e dureza para com os demais. A protagonista encontra na dor um meio de tentar sentir algo, mesmo que seja pelo sofrimento. Ingrid Thulin recebeu indicações para diversos prêmios pela interpretação que mescla frieza e vulnerabilidade. Harriet Andersson é pura entrega para Agnes. Os gritos ecoados pela personagem são de um tormento ensurdecedor. E Kari Sylwan é o coração e emoção do quarteto. O roteiro mescla perfeitamente a trajetória das proagonistas.

Indicado ao Oscar de melhor fotografia, as cores que permeiam a direção de arte e cada protagonista reforçam o importância das imagens na trama. A trajetória do quarteto sempre imersa entre o vermelho e a sombra demonstram o sofrimento e o luto interior de cada uma das protagonistas. Maria veste vermelho no primeiro ato para ressaltar o poder e o jogo de sedução com o médico da família. A distância entre as irmãs que estão unidas somente pelo sofrimento possui o toque do branco, preto e vermelho. As cores podem ser vistas nas cortinas da casa e nas vestimentas das protagonistas. A sombra também ganha força pelo distanciamento das mulheres retratadas. Sempre que uma trajetória tem um ponto final, o foco é em close no rosto, posteriormente tomado pelo vermelho. Agnes é a protagonista mais exposta do quarteto, tanto na dor quanto nos sentimentos que nutre pelo zelo das pessoas que estão próximas. Ela sempre veste branco, mesmo quando a doença ainda não está em estado avançado. O branco representa a transparência da personagem. Anna é a serviçal. Apesar de ter uma dor imensa pela perda do filho, ela é a personagem que sofre por motivos mais aparentes e que consegue encontrar conforto ao cuidar de Agnes. Uma dedicação materna. A personagem utiliza roupas com cores apagadas por representar uma simples prestadora de serviços, mas quando está com Agnes se vê desnuda e pura com sentimentos verdadeiros de uma mãe ao cuidar e proteger a filha.


Gritos e Sussurros possui uma trilha pontual. Sempre na alternância da trajetória das mulheres, o som que incomoda é emitido para ressaltar o término e o tempo dramático de cada personagem. O som do relógio ganha destaque pelo tempo monótono que não passa na vida de Maria, pelos cuidados com Agnes, pela frieza de Karin e intensa dedicação de Anna. Tudo transpassa em um ritmo lento. Quando Maria e Karin conseguem unir laços no sofrimento, o silêncio toma conta da tela. O tempo passa mais depressa pela entrega de sentimentos. Sempre que cada personagem entrega drama ao contexto proposto o ritmo é diferenciado, mas com o tempo suficiente de tela para que cada atriz se entregue ao papel. 

Bergman explora ao máximo o quarteto de protagonistas em Gritos e Sussurros. Os gritos são repletos de sofrimento pela doença de Agnes e os sussurros são os momentos em que as protagonistas estão entregues ao sentimento que sentem uma pela outra. Sussurros são velados porque são reflexos de uma família imersa na introspecção e aparência. A fotografia ganha tons intensos e mergulha cada personagem na frieza e sofrimento presente na trama. Bergman deixa as imagem causarem incômodo no espectador. Um incômodo necessário intensificado pelo ritmo lento e sensorial da trama. Sabemos pouco sobre as protagonistas, mas sentimos intensamente a dor de cada uma delas. Dores particulares de um universo particular. No poder das imagens quem grita e sussurra é o espectador que pode não compreender,  mas sente toda a trajetória do quarteto de forma visceral.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Entretenimento de qualidade (Homem-Aranha no Aranhaverso)

Miles Morales é aquele adolescente típico que ao grafitar com o tio em um local abandonado é picado por uma aranha diferenciada. Após a picada, a vida do protagonista modifica completamente. O garoto precisa lidar com os novos poderes e outros que surgem no decorrer da animação. Tudo estava correndo tranquilamente na vida de Miles, somente a falta de diálogo com o pai o incomoda, muito pelo fato do pai querer que ele estude no melhor colégio e tudo que o protagonista deseja é estar imerso no bairro do Brookling. Um dos grandes destaques da animação e que cativa o espectador imediatamente é a cultura em que o personagem está inserido. A trilha sonora o acompanha constantemente, além de auxiliar no ritmo da animação. O primeiro ato é voltado para a introdução do protagonista no cotidiano escolar. Tudo no devido tempo e momentos certos para que o público sinta envolvimento com o novo Homem-Aranha. Além de Morales, outros heróis surgem para o ajudar a combater vilões que dificultam s

Vin Diesel e Lua de Cristal (Velozes e Furiosos 10)

"Tudo pode ser, se quiser será Sonho sempre vem pra quem sonhar Tudo pode ser, só basta acreditar Tudo que tiver que ser, será".   Quem não lembra da icônica música da Xuxa, no filme Lua de Cristal? O que a letra está fazendo no texto de Velozes e Furiosos 10? Nada, ou tudo, se você quiser, será! A letra possui ligações com o filme de Vin Diesel  pelo roteiro repleto de frases de efeito e por Jason Momoa, que mais parece um desenho animado do programa da Rainha dos Baixinhos, que aquecia o coração das crianças nas manhãs da Globo. A música persegue o filme porque Xuxa tinha como público- alvo as crianças, certo? Ok, como definir o vilão de Jason? O personagem é estremamente caricato. A forma como o ator proporciona risos no espectador é digno de coragem. A escrita é legítima e verdadeira. É preciso coragem para fazer um personagem que sempre está na corda bamba e pode cair à qualquer momento, porém, Jason segura às pontas e nos faz refletir que ele é mesmo um psicopata que no

Um pouquinho de Malick (Oppenheimer)

Um dos filmes mais intrigantes que assisti na adolescência foi Amnésia, do Nolan. Lembro que escolhi em uma promoção de "leve cinco dvds e preencha a sua semana". Meus dias foram acompanhados de Kubrick, Vinterberg e Nolan. Amnésia me deixou impactada e ali  percebi um traço importante na filmografia do diretor: o caos estético. Um caos preciso que você teria que rever para tentar compreender a narrativa como um todo. Foi o que fiz e  parece que entendi o estudo de personagem proposto por Nolan.  Décadas após o meu primeiro contato, sempre que o diretor apresenta um projeto, me recordo da época boa em que minhas preocupações eram fórmulas de física e os devaneios dos filmes. Pois chegou o momento de Oppenheimer, a cinebiografia do físico que carregou o peso de comandar a equipe do Projeto Manhattan,  criar a bomba atômica e "acabar" com a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria já havia começado entre Estados Unidos e a Alemanha, no quesito construção da bomba, a ten