Pular para o conteúdo principal

Estranhos nos respectivos ninhos (Desobediência)


Desobediência é um filme onde os elementos narrativos dialogam constantemente com o estado psicológico do trio central. Após a morte do pai, Ronit, uma fotógrafa renomada que vive em Nova York, não encontra outra alternativa se não retornar para a cidade natal e enfrentar os dilemas vividos no passado. Assim que o espectador acompanha os primeiros minutos da vida de Ronit, a montagem se faz presente. O elemento narrativo é um dos pontos principais da trama. Nathan Nugent realiza a montagem do filme como uma espécie de quebra-cabeça. Não no sentido de deixar pistas para que o espectador fique inquieto com elementos fora do lugar. A trama segue um fluxo coerente, mas a montagem repleta de cortes deixa a sensação incômoda, no bom sentido, de tensão e vazio. Falta sentimento na vida do trio. Ronit deixou a cidade natal porque foi banida pelo pai. Sua amiga de infância, Esti, não possui vida, somente encontra momentos de felicidade quando leciona. E Dovid vive com Esti sem conseguir enxergar a apatia e tristeza profunda da esposa. Apatia camuflada pela aceitação de ensinamentos religiosos. O reencontro modifica a vida do  trio. 

O roteiro adaptado por Sebastián Lelio e Rebecca Lenkiewicz possui diálogos pausados que refletem o estranhamento dos familiares pela figura de Ronit. Recebida como uma estranha no ninho, a protagonista, os demais familiares e o espectador sentem o ritmo lento intensificado na troca de olhares constantemente intenrrompidos. Na metade do segundo ato, uma atração forte surge entre as duas mulheres que parecem estranhas, mas que nutrem uma atração muito forte estabelecida no passado. O ritmo permanece lento, porém, a ligação das protagonistas fica mais intensa, assim como o envolvimento do espectador. O grande equívoco do roteiro é prolongar o desfecho deixando o terceiro ato cansativo. 

As personas de Rachael Weiz e Rachael McAdams são exploradas ao máximo pelo diretor Sebastián Lelio. Assim como fez em Uma Mulher Fantástica, aqui a câmera acompanha as protagonistas de forma exaustiva e reveladora. Weiz possui a atração pela câmera necessária para conduzir o filme. O estranhamento até metade do segundo ato se transforma em pulsão na interpretação da atriz. Já McAdams compreende a dualidade da protagonista. A submissão é entregue de forma contida, mas quando os seus sentimentos são aflorados é de maneira delicada. Com igualdade de forças ambas se complementam. Sebastián explora o zoom in e close up extraindo o foco necessário para a dor do trio central. 


A fotografia e cenário também dialogam com as transformações proporcionadas no roteiro. A casa de Dovid é extremamente organizada e as janelas não são abertas. Uma Londres fria reforça o distanciamento dos personagens. A ausência de luz reflete diretamente na palidez de Esti. A vida monótona que o casal leva é seguida à risca pelas tradições judaicas. Interessante a trama abordar a cultura pautada na religião com a mesma força que expõe críticas severas reforçando o posicionamento das protagonistas. Quando o trio finalmente consegue vivenciar a liberdade, a luz invade a casa e os protagonistas são literalmente iluminados. Destaque importante para a trilha sonora que incomoda em momentos pontuais do filme ressaltando a frieza da atmosfera retratada.

Além das atuações que movem a trama e dos questionamentos levantados no roteiro sobre aceitação, o que sobressai em Desobediência são alguns elementos narrativos que acompanham as transformações vividas pelo trio central. O cenário, figurino, trilha e direção são reflexo direto da atração e afastamento dos personagens. Os protagonistas são como estranhos no ninho. Desobediência é um filme propositalmente frio que aos poucos busca o envolvimento do espectador ao mesmo tempo que os protagonistas tentam buscar aceitação nos respectivos ninhos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...

Uma provável franquia (Histórias Assustadoras para Contar no Escuro)

Um grupo de amigos que reforça todos os estereótipos possíveis, a curiosidade que destaca os laços da amizade, uma lenda sobre uma casa assombrada e desaparecimentos constantes. Histórias Assustadoras para Contar no Escuro apresenta uma trama previsível repleta de referências à filmes  e séries lançadas recentemente como It: A Coisa e Stranger Things. É a velha cartilha de Hollywood: se deu bilheteria em um estúdio à tendência é repetir a dose. Apesar dos elementos e trama repetitivos, sempre vale a pena assistir novos atores surgindo e diretores principiantes com vontade de mostrar trabalho. É o que acontece neste filme produzido e roteirizado por Guilhermo Del Toro . Nada de muito inovador no gênero, o jumpscare reina, porém com o olhar criativo da direção e uma nova geração afiada, o filme ganha o envolvimento do espectador.  O roteiro gira em torno de um grupo de amigos excluídos que finalmente tomam coragem para enfrentarem os garotos mais valentes. Assustados, o ...