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O previsível que realça a sensibilidade (Amnésia)


Martha vive em uma casa distante da cidade, no litoral de Ibiza, sem eletricidade e como companhia um toca fitas onde escuta músicas clássicas e ocasionalmente degusta vinhos levados por um velho conhecido. Jo é um jovem que sonha em ser DJ na famosa boate Amnésia. Ele muda-se para a casa próxima de Martha e ao sofrer um acidente montando o equipamento de trabalho busca ajuda na casa ao lado. A partir desse encontro casual, os protagonistas começam a se relacionar. Entre um almoço e voltas corriqueiras pelo local surge o inevitável sentimento de uma forte amizade. 

Amnésia explora os conflitos e diferenças dos personagens, mas também ressalta como o pensamento e a vivência podem modificar a vida de ambos. Cabe ao diretor proporcionar ao espectador a experiência de desfrutar, assim como Jo, das belezas presentes no litoral. Na cena em que os protagonistas estão a bordo de um barquinho, Barbet Schoroeder enfatiza a inserção do público com movimentos de câmera similares aos movimentos do barco. A narrativa e condução da trama são lentas porque Martha decide em determinado momento se retrair e não contar muito sobre o passado. Até o começo do segundo ato, Jo acredita que Martha não é alemã como ele, pois ambos sempre falam no idioma americano quando se encontram. Quando Jo descobre que Martha é alemã, a relação estremece. Ela quer esquecer sua origem. Não bebe vinhos alemães, não anda em carros fabricados no país e tão pouco fala o idioma. 

Jo procura Martha para tentar entender os motivos que a levaram a tomar atitudes tão drásticas com relação ao passado. A protagonista sente a necessidade de contar ao jovem que presenciou um acontecimento que a marcou profundamente. Ela avistou um ônibus repleto de crianças extremamente magras que passavam fome nos campos de concentração nazistas. O relato surte um efeito imediato no espectador. A ausência de imagens se faz necessária porque a forma como é conduzida a cena e a força do roteiro bastam para realçar a importância do sofrimento vivido pela protagonista. Aos dezesseis anos, ela se apaixonou por um judeu. O amor de ambos foi interrompido pelos horrores do genocídio marcantes na época. Neste momento ambos começam a falar alemão e a direção ganha mais agilidade. Os diálogos são mais intensos e menos previsíveis, o que destoa do ritmo presente no começo da trama.

A abertura de Martha ao tentar aceitar o que passou é explorado pelo diretor em uma bela cena, onde a câmera acompanha o take de grande árvore toda contorcida e junto com a narração em off de um poema alemão, Barbet leva ao espectador a reflexão de que por mais resistência que a protagonista tenha com relação a cultura alemã, sua origem está enraizada e apesar de contorcida pelas marcas do passado, o belo pode ser resgatado. Quando Martha se sente segura e aceita melhor a raiva que nutriu durante muito tempo, a família de Jo tenta levá-lo para a Alemanha que vive as consequências da queda do muro de Berlim. O roteiro explora com um alívio cômico a situação. Se a protagonista demorou para aceitar um alemão vivendo perto de sua casa, o que ela poderá fazer com a chegada de uma família? 


Todo o terceiro ato é voltado para os conflitos e dramas de Bruno, avô de Jo. A ótima presença de Bruno Ganz em cena enriquece ainda mais a trama. Todo o drama por ele vivo nos campos de concentração despertam no espectador o interesse pelo que ficou repreendido durante todo o filme por Martha. No primeiro momento, Jo acredita que o avô irá contar mais uma experiência presenciada em um período tão doloroso para todos ao redor da mesa. Martha o pressiona, pois sabe que os relatos de Bruno não condizem com a realidade. O roteiro ganha mais intensidade com o monólogo de um personagem sofrido que somente quis poupar o neto da dura verdade presente nos atos que cometeu. Neste momento o roteiro tem a sensibilidade de explorar o lado humano de Bruno, que realizou atos imperdoáveis, mas que tentou salvar como pode inúmeras mulheres da violência e horrores dos campos de concentração. 

O mais interessante de Amnésia é como a previsibilidade presente nas cenas realçam a sensibilidade dos personagens. O espectador sabe que de alguma forma a jovialidade de Jo irá modificar a vida de Martha. Ela consegue se livrar dos sentimentos e raiva que sentia. Ele amadurece no convívio da maturidade de Martha. Apesar do diretor por diversos momentos explorar cenas soltas e uma subtrama que não acrescenta em nada no contexto dos protagonistas, ele consegue inserir o espectador ao que mais importa em Amnésia: as relações humanas. Como e de que maneira o contato com o outro nos faz crescer e amadurecer, mesmo que para isso ele utilize da previsibilidade para alcançar a sensibilidade repreendida na protagonista. 

Comentários

Anônimo disse…
Interessante, ao que parece, Paula.
Paula Biasi disse…
Moacir, a trama possui um ritmo bem lento no começo... mas melhora consideravelmente no segundo e terceiro atos.

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