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Sobre luto, maternidade e pertencimento (Lamb)

 

Lamb pode parecer visualmente estranho no primeiro momento, porém, nas entrelinhas, o longa é sobre como decidimos expurgar nosso sofrimento ao lidar com o luto. Na trama o casal que possui uma criação de ovelhas, se vê em choque com algo inusitado: uma delas acaba de ter Ada. Tudo beira à normalidade, se não fosse um detalhe: a pequena é metade animal, metade humano. Não demora muito para que o casal adote a pequena. O cunhado parece transparecer um pouco de racionalidade no ambiente familiar, pois ele é o único que compreende o quanto tudo é surreal. Ada dorme no berço perto da cama do casal, faz refeições em "família" e passeia com o pai em momentos ternos. 

A protagonista Maria, nome muito propício, adota o ser como se fosse uma filha para preencher o vazio existencial após uma terrível perda. Claro que um amor não substitui o outro, mas o sentimento cresce pelo animal de tal forma que se aproxima do maternal. Maria acredita que é mãe novamente e o marido Ingvar a incentiva porque também acredita que tudo pode mudar para melhor com a presença da ovelhinha. A alegria toma conta do casal que revive o cansaço de um bebê em casa, mas também os desejos sexuais que estavam adormecidos com o luto. Até o cunhado que alerta o absurdo consegue sentir que tudo mudou entre eles. Se Maria está entorpecida pela alegria da maternidade, do outro lado, um mãe sabe que o filhote foi retirado dela. Uma só está feliz por conta da tristeza da outra. O instinto animal sabe exatamente onde a filha está e como mãe, ela espera na janela atenta para que a mãe adotiva devolva o que genuinamente lhe pertence. Atitudes extremas são tomadas e consequências drásticas acontecem em prol do amor.  

Valdimar Jóhannsson assume a direção criando uma atmosfera tensa e gélida que justifique as atitudes do casal. Existe amor, mas também existe a culpa por saber que a alegria de Maria gera sofrimento em outra mãe. O close no olhar das mães ressalta o desespero silencioso de ambas. O recurso também reforça o sentimento de pertencimento da pequena que ao olhar fixadamente para uma fotografia na parede com ovelhas sabe que é diferente dos pais e que pertence a outro ambiente. Valdimar ressalta momentos solitários de Ada sempre na natureza como se algo faltasse. Com a câmera o diretor expressa toda a dor dos protagonistas e da pequena. Em determinado momento a estranheza da atmosfera de terror dá lugar ao sentimento de empatia pela dor. O que fica com o desfecho desolador? Como ter o que sempre foi do outro? 

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