Pular para o conteúdo principal

A função da sétima arte (Mariguella)


O filme Mariguella, estreia de Wagner Moura na direção, faz um recorte dos últimos anos da vida do guerrilheiro, além de abordar as relações com os companheiros de luta e familiares. O roteiro de Wagner e Felipe Braga, inspirado no livro Mariguella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, equilíbra o lado revolucionário e humano do protagonista. Aos poucos cada companheiro sofre com a tortura que foi amplamente camuflada, no período da Ditadura Militar, pela tríade: governo, imprensa e polícia. Com muita resistência, Mariguella consegue o apoio de outra tríade: jovens, igreja e alguns veículos de comunicação. Felipe ressalta o arco de cada personagem destacando as vertentes citadas. Cada um defende ideais democráticos, e, claro, sofre as consequênciais com à morte.   

O primeiro trabalho de Wagner na direção alterna entre a urgência que a temática necessita e momentos brandos voltados para o núcleo familiar. A urgência pulsa com a câmera na mão acompanhando Seu Jorge e demais coadjuvantes em confrontos com a polícia. Um intenso plano sequência invade à tela em um prólogo que alerta o espectador sobre a atmosfera tensa que permeia toda a narrativa. Quando Wagner explora o primeiro plano, close e a quebra da quarta parede, o roteiro de Felipe manter a tensão nos diálogos inflamados de ideologia e certo conformismo pela luta perdida momentaneamente. Vale destacar também o cuidado com o desing de produção ao transportar o espectador para a década de 1960. O figurino, carros, os detalhes dos objetos cênicos demonstram todo cuidado da produção. O trabalho minicioso da maquiagem nas cenas de tortura impacta e nos faz sentir o que foi o período mais violento da História Brasileira. 
 

Como Wagner conhece o ofício da atuação e com o trabalho de Fátima Toledo na preparação do elenco fica nítido o pulsar e tensão que a temática necessita. Seu Jorge compõe Mariguella com tamanha intensidade, mas também com pinceladas de humor e sensibilidade. A firmeza surge nos momentos de conflitos estratégicos, porém a entrega total pode ser sentida pelo espectador quando o protagonista é torturado. Os coadjuvantes reforçam o equilíbrio entre o humor e a pulsão em cena. É em Humberto Carrão que o trabalho de Fátima Toledo emerge. Os conflitos do personagem sempre são explorados de forma pulsante e ininterrupta. São diálogos ritmados e com uma intensidade já conhecidos da preparadora. Bruno Gagliasso destoa dos demais personagens por trazer uma composição mais caricata para o delegado Lúcio. Enquanto os demais atores transbordam leveza, como no caso de Adriana Esteves, Bruno vai na contra mão e carrega na interpretação. Os atores estão em extremos opostos, mas não há como negar que o personagem destoa dos demais causando ruídos na narrativa. 

Após os créditos finais de Mariguella vale destacar o poder que a sétima arte exerce no espectador. O filme de Wagner Moura ganha notoridade no cinema nacional por tornar cristalino o que foi abafado durante décadas e que atualmente ainda é negado por muitos. Mariguella tem a função de alertar futuras gerações sobre o que de fato ocorreu e que persiste nos dias atuais. Alguns filmes nacionais nos proporcionam a leveza do entretenimento, como na cena em que Mariguella está no cinema e o filme projetado é o de Amácio Mazzaropi, outros nos emocionam com a dramaticidade de uma cruel realidade histórica. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Uma provável franquia (Histórias Assustadoras para Contar no Escuro)

Um grupo de amigos que reforça todos os estereótipos possíveis, a curiosidade que destaca os laços da amizade, uma lenda sobre uma casa assombrada e desaparecimentos constantes. Histórias Assustadoras para Contar no Escuro apresenta uma trama previsível repleta de referências à filmes  e séries lançadas recentemente como It: A Coisa e Stranger Things. É a velha cartilha de Hollywood: se deu bilheteria em um estúdio à tendência é repetir a dose. Apesar dos elementos e trama repetitivos, sempre vale a pena assistir novos atores surgindo e diretores principiantes com vontade de mostrar trabalho. É o que acontece neste filme produzido e roteirizado por Guilhermo Del Toro . Nada de muito inovador no gênero, o jumpscare reina, porém com o olhar criativo da direção e uma nova geração afiada, o filme ganha o envolvimento do espectador.  O roteiro gira em torno de um grupo de amigos excluídos que finalmente tomam coragem para enfrentarem os garotos mais valentes. Assustados, o ...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...