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Os trinta e poucos anos (Encontros)


Encontros é um filme de opostos que acompanha o estudo de personagem de Rémy e Mélanie. Ele sofre de insônia; Ela dorme demais. A partir do momento em que Rémy tem um ataque de ansiedade no metrô, a procura por ajuda parece ser a melhor solução. Já Mélanie acredita que os sonos constantes são consequência do acúmulo de trabalho, mas ao começar a fazer psicoterapia reflete que o estopim foi o término do namoro. Entre os atos o espectador acompanha a tentativa dos protagonistas em continuar a viver, mesmo que eles tenham em comum o princípio de uma depressão. A incerteza no trabalho de Rémy o deixa inseguro com relação ao futuro. Mélanie é pura dedicação aos estudos no combate ao câncer, mas a insegurança para uma apresentação a deixa instável emocionalmente e a prejudica no trabalho. No decorrer do filme os protagonistas frequentam os mesmos lugares, porém a vida virtual e o acaso não os faz ter o contato físico necessário para conhecer um ao outro. 

O roteiro do diretor Cédric Klapisch e Santiago Amigorena reflete como poucos a vida de uma juventude sem rumo e doente. O mundo digital está presente em vários momentos na vida dos protagonistas. Além de transmitir uma sensação de imersão no cotidiano, o roteiro explora a todo o momento a falta de comunicação entre as pessoas. A ausência de comunicação torna-se uma coadjuvante que insiste em ser protagonista na vida dos personagens. A tentativa de comunicação ou relacionamento é frustrada e só intensifica ainda mais alguns traumas sufocados na vida dos protagonistas. Um dos grandes méritos do roteiro é explorar aos poucos, a cada sessão que a dupla realiza na psicoterapia, as camadas dos protagonistas de forma sensível. O fato de Rémy ter uma família extremamente feliz o sufoca e o aprisiona em seus traumas. Já Mélanie não consegue estabelecer contato com os familiares justamente pela ruptura da separação dos pais. O aprisionamento dos sentimentos é o ponto que liga os protagonistas e faz o espectador ter contato com o lado sensível dos personagens. Outro ponto chave na trama é o personagem de Simon Abkarian, dono de uma lojinha e que de vez em quando faz propaganda para um conhecido professor de dança. Ele é o ponto de equilíbrio para o lado cômico da trama. 

A direção de arte possui papel fundamental no arco dos protagonistas e coadjuvantes. O apartamento dos personagens é puro reflexo do estado depreciativo em que eles se encontram. Rémy mora em um local pequeno, pouco iluminado, com a tinta das paredes gastas tendo como companhia somente um gatinho branco que sua vizinha o força a ter. O apartamento de Mélanie é mais amplo e com um toque maior de sofisticação reflexo direto condição financeira estável da protagonista. Quanto maior o local, maior é a solidão. Não existe um objeto cênico que seja reflexo da vida da protagonista. A fotografia também casa com os arcos dos personagens. O único momento que o filme possui paletas de cores quentes é quando os personagens entram na loja. São cenas leves onde a interação física se faz presente, o calor humano do contato fica evidente na fotografia. O restante do filme é ressaltado por paletas frias para destacar a solidão dos personagens e, por consequência, a depressão. Outro elemento narrativo importante é a edição de som que se faz presente pelo fato da protagonista contemplar o vai e vém dos trêns perto do local onde ela mora. O elemento narrativo também reflete o silêncio dos protagonistas. 
    

O ponto em comum entre os atores que interpretam Rémy e Mélanie é a ausência de vida no olhar. Existe um vazio que nunca é preenchido mesmo que os personagens estejam rodeados por amigos e familiares, a solidão profunda no olhar está presente em cada cena. François Civil empresta além do olhar um conformismo na falta de motivação para continuar a viver. Um acontecimento familiar faz com que o personagem sinta culpa por ser feliz e o ator consegue transmitir um sofrimento contido no olhar de Rémy. Aos poucos, nas sessões de terapia, o ator se permite sentir todos os sentimentos sufocados pela família e um sorriso brota nos lábios do personagem. Já Ana Girardot permanece de forma mediana na interpetação de Mélanie.

A direção de Cédrick Klapisch foca no cotidiano dos personagens e proporciona ao máximo uma imersão para o espectador na vida dos protagonistas. A falta de vida presente durante todo o filme é ressaltada principalmente pelo close do diretor nos atores. Existe um ritmo interessante que o diretor imprime ao filme pelo fato de destacar a movimentação de pessoas ao redor dos personagens. É um contraste interessante entre a vida pulsante no mundo externo e a ausência dela no interior dos personagens. A falta de comunicação, os relacionamentos artificiais gerados por aplicativos e o sufocamento das emoções que resulta em doenças psicossomáticas. Encontros é o puro reflexo da geração dos trinta e poucos anos sem rumo e totalmente entregue a introspecção dos sentimentos. 

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