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Uma temática que insiste em retornar (Deslembro)


Deslembro toca em uma temática que gera reflexão nos dias atuais : a Ditadura militar. A trama gira em torno de Joana que passou boa parte de sua vida na França. Com a lei da Anistia, a família decide retornar ao Rio de Janeiro e a vida da jovem muda completamente, pois lembranças do passado voltam fazendo com que Joana saiba mais sobre o que realmente aconteceu com o pai considerado desaparecido político. A mãe evita ao máximo falar sobre o que sofreu na época e Joana busca refúgio emocional na figura da avó Lucia. A relação avança a medida que a protagonista começa a lembrar de acontecimentos da infância. Deslembro toca em uma temática já abordada em vários filmes brasileiros, mas o diferencial da trama é resgatar laços perdidos e abafados pela situação vivida na época de forma extremamente sensível.

A diretora Flávia Castro aposta na naturalidade da protagonista e na força da temática para conduzir a trama. Joana reluta no primeiro momento o retorno para o Brasil. A vida na França era estável e voltar para o Brasil gera constante desconforto. Esse desconforto é evidente na câmera instável durante boa parte do filme. A instabilidade é reflexo da falta de pertencimento e identidade da jovem. Outro aspecto que reforça essa questão é a posição na mise-en-scène de Joana nas cenas. A jovem permanece no canto da tela em momentos de questionamento e lembranças do passado. Outro elemento narrativo que serve de ligação para começar a estabelecer uma conexão da jovem em termos de pertencimento é a musicalidade. A princípio Joana escuta rock. Aos poucos a música brasileira, basicamente MPB, toma conta do mundo de Joana. A música serve de elo para explorar o arco dos personagens na trama. 

O roteiro também da Flávia foca basicamente no olhar de Joana perante a falta de pertencimento no Brasil e a relação dos personagens com o passado político do pai. O ganho do roteiro é focar não somente no estranhamento de Joana, mas também na leveza ao retratar a temática. Como a protagonista não possui lembranças claras do pai, outros laços de afeto são estabelecidos e explorados no decorrer da trama. Os colegas da escola, a musicalidade e a relação com a avó. O recurso dos flashbacks reforça a questão do resgate da memória afetiva da protagonista e complementa as camadas presentes no arco de Joana. Focar de maneira pontual na relação com Lucia é o grande ganho e atrativo para o espectador. Lucia relembra a memória do filho ao mesmo tempo em que sofre de forma contida com os relatos da Ditadura. A troca de experiências entre as gerações fortalece o envolvimento com o espectador. O que prejudica e torna o filme cansativo em alguns momentos são os diálogos em vários idiomas e a musicalidade como recurso previsível no elo dos personagens.


Flávia Castro aposta no protagonismo e naturalismo da interpretação de Jeanne Boudier como Joana. A naturalidade presente na atuação contrasta com a experiência dos demais atores nas cenas mais dramáticas. O filme perde no enfoque da relação entre mãe e filha. Existe o afastamento natural das personagens, mas o ruído entre a naturalidade de Jeanne e a experiência de Sara Antunes cansa o espectador. Se existe esse ruído na relação mãe e filha prejudicando o filme, o mesmo não ocorre com Eliane Giardine. A naturalidade de Jeanne casa perfeitamente com a leveza e humor explorado por Eliane na figura de Lucia. O espectador aguarda com ternura os encontros de neta e avó. Um belo exemplo de naturalidade e experiência que se complementam na tela. Quando o espectador observa a naturalidade da jovem atriz dialogando com a naturalidade das demais crianças, o filme ganha uma camada extra de responsabilidade e amadurecimento da protagonista. 

Deslembro é um filme que toca em uma temática extremamente explorada no cinema brasileiro durante décadas. Flávia Costa explora a temática com um viés sensível e leve. A ausência de cenas violentas dá lugar ao relacionamento terno entre Joana e Lucia. A musicalidade também auxilia na leveza ao abordar o tema. Além do contato com a avó, o filme explora por meio de flashbacks a tentativa de resgate da identidade da protagonista e a compreensão de um período turbulento no Brasil. Um filme que peca pelo excesso de alguns elementos narrativos, mas que ganha o envolvimento do espectador pelo olhar sensível com que aborda uma temática tão forte para o Brasil que insiste em retornar.  

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