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Ozon sendo Ozon (Graças a Deus)




François Ozon é um diretor que transforma os protagonistas em personagens íntimos do espectador. O envolvimento é imediato e em Graças a Deus, além da intimidade estabelecida com os personagens, a temática torna-se um intenso atrativo. Na trama, um pai de família católico, relembra um trauma vivido no passado. Esse trauma o liga aos demais personagens da trama. A pedofilia na Igreja Católica toma proporções midiáticas. Alexandre Guérin continua frequentando a igreja, apesar de ter sido vítima de abusos no passado, sua fé é preservada. Será?

O grande mérito do roteiro de Ozon é enfatizar em cada ato um protagonista que tem como ligação o trauma do abuso. O fato de não ter protagonista instiga ainda mais o envolvimento do espectador, pois o trio que move a trama carrega consigo emoções e reações diversificadas. O trio quer expor ao máximo os abusos na mídia, mas cada um possui motivações distintas. Alexandre quer um pedido de desculpas e busca contato digital. Troca de emails e o encontro cara a cara com o obusador é o princípio do abalo de sua fé. François compreende que quanto mais exposição midiática, mais o grupo de apoio formado pelas vítimas terá força. O problema é até que ponto o protagonista pensa em si e na causa? Vale todo tipo de sensacionalismo para chamar à atenção? Já Emmanuel é o protagonista mais aberto em sua dor. Seu encontro com padre Bernard é repleto de sentimentos abafados pelo tempo. Outro membro do movimento ressalta: "Não faço isso contra a igreja. Faço pela igreja".  Dessa forma, o roteiro evidência questões fundamentais. Ozon reforça a culpa do abusador e destaca a tentativa de ocultar o escândalo. Mais um roteiro do diretor que instiga provocações e envolvimento do espectador.

Além do roteiro que instiga o envolvimento do espectador, a direção também reflete diretamente nesse envolvimento. O primeiro plano intensifica as atuações do trio de protagonistas, especialmente, quando o destaque é o drama pessoal de cada um. A câmera durante todos os atos acompanha os personagens enquanto é explorada uma narração em off. O recurso poderia quebrar o ritmo em alguns momentos, mas ao acompanhar os protagonistas, Ozon mantém o ritmo durante todo o filme. O diretor opta por um trilha pontual em momentos mais intensos de cada personagens e em alguns flashbacks. O silêncio diz muito sobre o sofrimento presente na trama.




Ozon é um diretor que consegue explorar ao máximo o trabalho dos atores em cena. Graças a Deus conta com um trio potente que compreende perfeitamente as camadas dos protagonistas. Melvil Poupaud explora um lado mais contigo de Alexandre. Ele sofre de forma introspectiva, até porque precisa manter a fé dos filhos. Denis Ménochet é mais intenso e expõe além do trauma, uma ruptura com o irmão que sempre viveu à sombra do trauma do protagonista. Swann Arlaud é a alma do filme. O terceiro ato ganha uma força fora do comum pela presença do ator em cena. Emoção à flor da pele. E o que dizer de Bernard Verley? A ternura e nostalgia com que Bernand olha para os protagonistas instiga ódio e repulsa no espectador. Todo o elenco move a trama pela competência dos atores ao compor os personagens.

Graças a Deus expõe uma temática necessária e que sempre foi abafada pela igreja católica. De forma clara e direta o roteiro de Ozon coloca o trio de  protagonistas em busca de justiça, mesmo que o sensacionalismo ganhe o protagonismo dentro do movimento. As mulheres são intensas em todos os filmes do diretor, mas aqui elas perdem força. As camadas das personagens coadjuvantes são exploradas de forma a acrescentar pouco na trama, ou quase nada. Elas reforçam a temática principal, mas explorar o nu gratuito de Jennifer a torna pequena. O nu da personagem foge do contexto proposto de sugestões, onde cabe ao espectador construir as cenas no seu imaginário. Apesar dos deslizes com as figuras femininas na trama, Graças a Deus é mais um filme impactante na filmografia do diretor. Enfim, Ozon sendo Ozon.

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