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Reflexo dos tempos modernos (Roma)


Roma é um filme atemporal. O abismo entre classes sociais e a força da figura feminina são as temáticas centrais dos atos. Cleo é empregada doméstica e babá dos filhos de Dona Sofia. O filme aborda subtramas importantes que são o reflexo de vários lares ao redor do mundo. A empatia com a protagonista é imediata. Cleo é amada verdadeiramente pelos filhos mais novos de Sofia, mas a personagem sente um imenso vazio. Apesar de transitar por todos os cômodos da casa e fazer parte da "família", Cleo não pertence a ninguém. A solidão é sua fiel companheira. Esse sentimento também está presente na vida de Sofia. Com o marido sempre viajando, o desabafo da patroa ao telefone é acompanhado de forma acanhada e inesperada por Cleo. A personagem precisa trabalhar e os conflitos familiares de Sofia a atingem constantemente. A todo momento o espectador observa a protagonista e percebe que a empregada sempre soube qual era o seu lugar no mundo. Na realidade ela não tinha lugar. Roma acompanha a solidão de duas mulheres ligadas por figuras masculinas covardes. O namorado de Cleo a abandona ao descobrir a gravidez. O marido de Sofia não aguenta a rotina e pressão familiares. A conexão única entre os dois mundos é a solidão.

Roma é um filme que presa pela força das imagens em preto e branco. A fotografia potencializa a interpretação do elenco e enfatiza a força presente nos diálogos. Pelo envolvimento total do diretor nas diversas áreas de produção, a autoria de Cuarón invade Roma nos mínimos detalhes para que a relação com o espectador seja intensa. O roteiro também escrito pelo diretor reforça uma linha tênue entre a simplicidade e o conformismo. Quando Cleo ressalta em uma brincadeira de criança que "gosta de estar morta", na realidade é como se a protagonista fosse meramente invisível para os adultos da família. O roteiro reforça a todo momento a hierarquia entre patrão e empregada. Cleo senta no cantinho da sala e a figura da criança estabelece com um gesto simples o pertencimento momentâneo de Cleo na família, somente por alguns instantes, até a dona da casa lhe pedir um chá. Todos os diálogos são precisos e complementam a invisibilidade de Cleo perante os demais arcos propostos. Deixar a fotografia em alguns momentos ser a protagonista da trama reforça não somente a autoria de Cuarón, mas intensifica também arco e dramaticidade das mulheres de Roma. A invisibilidade de Cleo, o abandono do marido de Sofia e o drama que sobrecarrega Dona Teresa destacam a ligação com o espectador. Roma é um filme sobre mulheres fortes abandonadas pela figura masculina. Não existe outra opção a não ser seguir em frente. 

Cuarón embarca na própria infância para retratar o drama vivido por Cleo. A ausência de trilha marca momentos importantes onde a protagonista ao menos deixa se envolver pelos sentimentos, mesmo que não compreenda muito bem o que verdadeiramente sente. Na realidade Cleo não tem tempo para sentir, somente cabe a protagonista fingir que está morta e trabalhar para Sofia. Muito da intensidade presente nas imagens vem da interpretação de Yalitza Aparicio. A atriz mescla simplicidade, inocência e intensidade no olhar da protagonista. Totalmente guiada por instinto, a personagem não hesita ao entrar no mar para salvar os filhos da patroa. Ela salva o único sentimento genuíno, o único afeto verdadeiro que sente. Além de evitar uma tragédia, Cleo compreende que toda a culpa cairá sobre seus ombros se algo acontecer com as crianças. Alfonso compreende que Yalitza estabelece para Cleo uma atmosfera conformista que causa empatia constante no espectador durante todo o filme. O conformismo é marca registrada da personagem e Yalitza o explora de forma encantadora. A atriz é a alma de Roma. Uma indagação surge: onde começa a personagem? Na realidade a atriz e protagonista são uma só. E é neste aspecto que Roma tem o seu maior trunfo. 


Se o papel da protagonista é estar imersa no conformismo cabe ao espectador refletir sobre o poder presente nas imagens de Cuarón. Utilizando planos longos para acompanhar as ações de Cleo, o diretor explora na fotografia toda a potencia da simplicidade nas ações da protagonista. Os acontecimentos surgem de forma intensa e afetam diretamente a personagem que transita na casa como serviçal. O falso pertencimento reforça o contraste entre as figuras femininas na trama. Cleo sempre esboça o conformismo mesmo que em vários momentos tente evitar o inevitável. Os conflitos acontecem de forma inesperada e a protagonista sempre carrega a culpa. Uma culpa que logo é substituída pelos afazeres domésticos e troca de carinhos com os filhos mais novos de Sofia. A trilha sonora é constantemente abafada pela presença das crianças sempre gritando e correndo ao redor da casa. Cleo não sente, apenas vive um dia após o outro. Um conformismo que invade a alma da protagonista e ao mesmo tempo provoca várias reflexões no espectador.

O alcance de Roma também nos faz refletir sobre os rumos atuais da sétima arte. O filme de Alfonso Cuarón levanta questionamentos sobre o duelo do Cinema X Streaming. Roma não participou de alguns festivais por ser um filme feito para a Netflix. Cuarón obviamente teve um alcance maior por parte do público e também liberdade para realizar o filme. Liberdade que provavelmente seria limitada pela pressão de um grande estúdio. O debate levanta indagações importantes sobre o futuro do cinema. Estaria a sala escura com os dias contados? Roma é claramente um filme feito para o cinema e o espectador perde toda a imersão que a sala escura proporciona. Quem teve a oportunidade de assistir na tela grande com certeza viu um filme diferenciado. Existem dois filmes de Cuarón. Existem duas experiências para o espectador. Quem viu na tela grande acompanhou o conformismo de Cleo com mais intensidade. Já quem assistiu em casa obteve uma imersão diferenciada. Agora, imagine quem assistiu Roma no celular? Puro reflexo dos tempos modernos. 

Comentários

Unknown disse…
Paula, o que vc achou sobre a indicação do filme ao Oscar? A atuação da atriz que personifica a Cleo foi suficiente para ser indicado?
Paula Biasi disse…
Natália, esse assunto é delicado. Muito foi dito sobre a questão da atriz não estar atuando.Neste caso,eu tenho a tendência em direcionar meu olhar mais para a direção que soube explorar muito bem a protagonista. Será que a atriz conseguirá atuar em outras produções? O cinema está repleto de atrizes que tiveram destaque no primeiro filme e depois caíram no ostracismo. Quanto ao primeiro questionamento,eu acredito que Roma é tão sensível e universal.Valeu cada indicação. Cada cena tem um cuidado extremo para transmitir o olhar da protagonista. Sempre que tiver vontade de fazer questionamentos...sinta-se a vontade. Vamos debater. Forte Abraço.

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