Pular para o conteúdo principal

O foco é o ser humano (A noite devorou o mundo)


Será que não vivemos em um mundo repleto de tecnologia e solidão? O que o ser humano faria se não existisse mais o contato virtual? Já não estamos vivendo a completa Era da solidão? O filme de estreia do diretor Dominique Rocher (II) coloca o protagonista em uma situação de total isolamento onde a única companhia é a solidão. Sam é um dos poucos sobreviventes de um apocalipse zumbi. Sam precisa lidar com a falta de suprimentos e energia. Suportar o frio e o ausência de contato físico. O protagonista encontra em Alfred o consolo para os dias mais pesados. Alfred é a companhia que o conforta, mas Alfred é um zumbi preso por segurança no elevador do prédio. O único contato é o zumbi que transborda afeto no silêncio. E assim os atos permeiam a trama também assinada pelo diretor.

Anders Danielsenlie é a escolha acertada para um filme que exige ao máximo da atuação para envolver o espectador. O ator passa boa parte da trama sozinho e precisa transmitir os mais variados sentimentos na mesma cena. O primeiro ato é um exercício para o ator se sentir confortável na mise-en-scène voltada exclusivamente para ele. Sozinho em cena, Anders explora o físico e o olhar para a sobrevivência do protagonista. A tensão também acompanha diretamente o trabalho do ator, que consegue nos momentos certos não deixar o filme perder o interesse para o espectador. O trabalho de Anders envolve de tal maneira o público que a trama não torna-se cansativa por ser focada somente em Sam. Entre os atos a entrega do ator é nítida principalmente no aspecto físico pela falta de suprimentos e cansaço na vigilância constante em decorrência de um ataque surpresa dos zumbis que cercam o prédio.

Se o filme possui tensão durante toda a projeção é graças a presença firme do ator em cena. A imersão do espectador é proporcionada também por elementos narrativos que auxiliam ao transmitir toda a tensão necessária no decorrer da trama. A fotografia com paleta de cores frias envolve o protagonista quando a noite chega. E ganha vida com cores quentes pela sobrevivência de dia. Os enquadramentos e foco na atuação de Anders transmitem o sufocamento e isolamento de Sam. Se o foco é a falta de interação, a câmera é toda voltada para a entrega de Anders. A ausência de trilha é um reflexo direto do isolamento de Sam. Somente em momentos pontuais a trilha surge para gerar tensão no espectador. O mais interessante é que a trilha não é explorada como muleta para gerar tensão, ela auxilia somente em cenas como complemento da tensão, pois a tensão está instalada de forma constante no filme pelos demais elementos narrativos.


O roteiro explora somente o conflito de Sam com a namorada em uma festa. Durante a festa o protagonista adormece e ao despertar ele está sozinho. O arco do personagem é intensificado a partir desse ponto e na intensa luta pela sobrevivência. Não explorar o passado de Sam é o que torna o roteiro simples e certeiro. Se a luta pela sobrevivência é diária, o passado pouco importa para o desenvolvimento da trama. Os conflitos são constantes e fazem com que o protagonista sempre tenha motivação mantendo o ritmo tenso do filme. O surgimento de Sarah perto do terceiro ato dinamiza e humaniza ainda mais Sam. O contato humano se faz necessário e mesmo por meio de pensamentos, a personagem o ajuda a sobreviver por mais tempo imerso na solidão. Se Sam provoca a interação com o contato humano, mesmo que seja para escutar os zumbis do lado de fora do prédio, o monólogo travado com Alfred é um dos pontos importantes do roteiro. O que Denis Lavant faz ao compor Alfred é de uma sensibilidade rara em filmes do gênero. Ele transmite intensidade em um olhar morto que representa claramente a solidão de Sam. 

Um dos aspectos mais interessantes de A Noite Devorou o Mundo é a ausência de sangue. O foco é o protagonista e os conflitos diários na busca pela sobrevivência. Tentar fazer música com garrafas, ter o contato singelo com Alfred, racionar alimento e buscar um pouco de conforto em ilusões. O filme provoca e envolve o espectador com vários questionamentos sobre como lidar consigo mesmo em meio ao desespero da morte iminente. Com o roteiro simples e repleto de camadas, A Noite Devorou o Mundo deixa de lado o terror voltado para a violência extrema tão significativo no gênero para focar de forma sensível no ser humano.   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Isso parece uma novela" (Bad Boys Para Sempre)

O começo de Bad Boys Para Sempre é basicamente um resgate do primeiro filme dirigido por Michael Bay. Mike e Marcus estão em um carrão em alta velocidade trocando ofensas e piadas enquanto percegue suspeitos. Além de todas as referências, a trama gira em torno de vingança, uma vingança mexicana. Sim, os vilões são mexicanos. Bandidos de um lado, policiais do outro e segredos revelados.  Will Smith sabe como lucrar na indústria, apesar de algumas escolhas equivocadas em projetos passados, Bad Boys Para Sempre parece uma aposta acertada do produtor. Desde o primeiro longa a química entre os atores é o que move a trama e na sequência da franquia não seria diferente. Martin e Will são a ação e o tom cômico da narrativa. Os opostos são explorados de forma intensa. Martin está mais contido com a chegada do neto e Will na intensidade de sempre. As personalidades se complementam apesar da aposentadoria momentânea de Marcus. Tudo ganha contornos diferenciados quando a família em to...

O Mito. A lenda. O Bicho-Papão. (John Wick : Um Novo Dia Para Matar)

Keanu Reeves foi um ator que carregava consigo o status de galã nos anos 80. Superado o estigma de ser mais um rosto bonito em Hollywood, o que não se pode negar é a versatilidade do astro ao escolher os personagens ao longo de décadas. Após a franquia Matrix, Keanu conquistou segurança ao poder escolher melhor os personagens que gostaria de interpretar. John Wick é o novo protagonista de uma franquia que tem tudo para dar certo. Um ator carismático que compreendeu a essência do homem solitário que tinha com companhia somente um cachorro e um carro. Após os eventos do primeiro filme, De Volta ao Jogo, Keanu retorna com John Wick repetindo todos os aspectos narrativos presentes no filme de 2014, mas com um exagero que faz a sequência ser tão interessante quanto o anterior. O protagonista volta aos trabalhos depois de ter a casa queimada. Sim, se as motivações para toda a ação presente no primeiro filme eram o cachorro e um carro, agora, o estopim é uma casa. Logo na primeir...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...