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Uma frieza que gera envolvimento (Corpo e Alma)


Corpo e Alma é um filme distante e ao mesmo tempo envolvente. O representante da Hungria, no Oscar estrangeiro de 2018, causa indagações no espectador para, posteriormente, envolvê - lo pela sincronia das subtramas. O primeiro ato é uma proposta interessante sobre a atração entre um cervo e uma corça. Os animais se aproximam lentamente até se tocarem. A diretora Ildikó Enyedi enfatiza o primeiro plano nos cortes das carnes, cabeça e patas. Tudo para gerar frieza e estranhamento no espectador. Mas o estranhamento ganha outras dimensões ao longo da trama.

O foco principal do roteiro são os sonhos e o casal de protagonistas. Endre, de poucos amigos, somente Jeno, tenta uma aproximação com a protagonista, por descobrir que eles possuem sonhos semelhantes. Aqui, o espectador começa a compreender o destaque para os animais. O cervo e a corça são os animais presentes nos sonhos dos protagonistas. À medida que a aproximação e o distanciamento acontecem na vida real, os animais praticam atos semelhantes. O roteiro ao explorar o arco dos personagens toca em assuntos delicados de forma sensível. A subtrama voltada para o personagem de Sándor não acrescenta muito no que é proposto, somente para deixar claro que muitas vezes às aparências enganam. Se o personagem fosse retirado da trama, não faria diferença no filme como um todo. O mesmo acontece com as investigações voltadas para o roubo de um material para forçar o acasalamento dos animais. Uma maneira superficial de introduzir e ligar os sonhos dos protagonistas. Aspectos que não prejudicam a trama no geral. 

O espectador não compreende ao certo o que a diretora quer propor até o final do primeiro ato. Após focar nos animais, o roteiro explora os protagonistas, Endre e Mária. Ambos possuem em comum a solidão. A câmera busca a dupla a todo o momento, seja em um close, primeiro plano ou entre os demais personagens. Endre simplesmente vive o cotidiano como diretor do abatadoro, enaquanto Mária, a dificuldade de sociabilidade. Ildikó destaca a frieza que paulatinamente é quebrada pela aproximação dos protagonistas. A paleta de cores frias e o figurino são aspectos fundamentais para reforçar a frieza e o distanciamento dos personagens. À medida que a protagonista se permite experimentar novas sensações, a paleta de cores torna-se mais quente. Quando os protagonistas se entregam a opção feita pela direção é ainda de distanciamento e frieza, mas o desfecho é de imensa sensibilidade. Mária quebra a barreira do toque e coloca o braço imobilizado de Endre junto ao seu corpo. Uma conexão simples e de grande significado para a protagonista. Outro elemento narrativo primordial para o estudo dos personagens é a montagem. Ela auxilia na alternância dos sonhos e aproximação dos protagonistas. Tudo em um ritmo lento e melancólico.


Corpo e Alma torna-se interessante muito pela presença e composição dos atores em cena. Como a proposta é explorar a solidão dos personagens, muitas cenas são focadas somente na presença dos protagonistas, por essa razão, a interpretação de Alexandra Borbély e Morcsányi Géza são de uma firmeza e potencializam a trama. Alexandra beira o estático e mesmo assim transmite somente no olhar toda intensidade de Mária. Já Morcsányi explora aos poucos um sorriso delicado para Endre, mesmo queo.   volte para a frieza do personagem. Ambos se complementam justamente pelo distanciamento e pelo fator inusitado presente nos sonhos. É na frieza do olhar que a conexão é estabelecida com o espectador. 

Algo inusitado acontece a todo o momento em Corpo e Alma que aproxima o espectador dos protagonistas: a frieza. Seja pela atmosfera explorada na presença dos animais que ligam os personagens, pela paleta de cores frias que provoca o distanciamento e ao mesmo tempo instiga os protagonistas motivados por sonhos inusitados, o figurino predominante na cor branca e verde escuro, a ausência de trilha sonora que destaca o silêncio durante boa parte do filme e pela interpretação dos atores em cena. Tudo gira em torna da frieza, mas ao mesmo tempo é uma frieza que impulsiona a atração dos protagonistas e auxilia como catalisador no envolvimento do espectador. 

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