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A alma do ser humano nas telas (Era uma vez em Tóquio)



Yasujirô Ozu. Conhecido pelos espectadores e especialistas da sétima arte como mestre Ozu. Três palavras apenas que transbordam sensibilidade na tela. O diretor japonês imprimi sua autoria marcante em toda filmografia. Extremamente significativa, as tramas de Ozu são o reflexo de intensos dilemas universais familiares. Após assistir a cópia remasterizada de Era Uma Vez Em Tóquio, alguns aspectos característicos do diretor ficam mais evidentes. A razão de aspecto 4x3, distante dos filmes atuais, nos proporciona uma sensação diferenciada ao explorar a mise en-scène presente no clássico. A sensação de cenários pequenos e a pouca movimentação envolvem ainda mais o espectador na trama.

Falar de Ozu é se encantar pela cultura japonesa e a forma diferenciada de atuação presente no clássico. Grande parte das cenas são voltadas para o cotidiano das refeições familiares. Na trama, um casal de idosos decide visitar os filhos em Tóquio. Mas os filhos extremamente ocupados com a vida corrida não dedicam tempo suficiente para os pais. A atuação é reflexo de como Ozu explora o tempo em sua filmografia. O que atualmente pode soar como estranhamento pela falta de interação dos atores, na realidade é reflexo de um tempo próprio para cada reação deles em cena. Os diálogos são leves, introspectivos e com pausas longas entre uma fala e outra para ressaltar esse tempo necessário presente na narrativa.

Shukishi e Noriko refletem sobre a vida e a falta de tempo dos filhos. E sempre que o casal está só, o roteiro de Ozu faz o espectador ter empatia pelos personagens. É uma conexão universal. O grande dilema entre pais e filhos. Quando mais velhos, os pais necessitam de cuidados e mais afeto, porém o contraste da vida adulta faz os filhos gradualmente se afastarem dos pais quando eles mais necessitam. Ironicamente, o filho que mora mais próximo dos pais é o que chega por último no velório de Noriko. A nora que não possui vínculo sanguíneo se afeiçoa e nutri sentimentos profundos pelo casal porque tem em comum a dor do luto pelo marido que todos acreditam estar morto. Ela se apega aos parentes do marido como uma obrigação e um laço de resgate pela lembrança que restou. Mas fica na figura de uma das filhas do casal o papel de trazer todos para a realidade, mesmo que ela seja rude é a que mais entrega sentimentos próximos do nosso cotidiano. Enquanto Noriko reflete sobre os problemas de forma doce, a filha possui falas ríspidas ao lamentar a morte da mãe e os problemas da bebida do pai. Como toda família, cada um com sua personalidade enriquece a trama. 


Durante duas horas e vinte Ozu apresenta ao espectador takes repetitivos ao explorar os personagens com Fuan (os leques japoneses), quando bebem chá e pedem mais arroz. Reflexo do cotidiano familiar, os personagens seguem a vida com conflitos que aos poucos ganham proporções mais drásticas, com a intensidade na interpretação que encanta o espectador por chegar próximo do naturalismo.  Um elo estabelecido com o público pelo ritmo lento que entrelaça perfeitamente com o tempo dos personagens em refletir sobre o que sentem. Outro traço marcante nos filmes de Ozu é o papel da mulher na sociedade e hierarquia familiar. Noriko sempre esteve presente e submissa ao marido. A figura materna sofre com a perda do filho e serve também de reflexão para a filha mais velha que não segue os passos da mãe.

Ozu como roteirista explora ao máximo características marcantes da cultura japonesa. Os leques, as pausas para refeições, o papel feminimo na hierarquia familiar e os temas universais entre pais e filhos. Já Ozu como diretor consegue captar a alma dos personagens pelo ritmo e leveza com que retrata cada um deles. Ozu, três palavras apenas que marcaram com profunda sensibilidade a alma do ser humano nas telas.

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