Pular para o conteúdo principal

Quando o espectador é o protagonista (Paraíso)


Certos filmes são difíceis de escrever porque lhe tocam tão profundamente como espectador que o lado crítico é totalmente absorvido pela emoção. Essa questão sempre acontece independente do gênero, afinal de contas, nunca deixamos de ser espectadores quando estamos "analisando" determinado filme e se a emoção não estivesse em primeiro plano, a crítica dificilmente tomaria corpo em forma de palavras. Paraíso é assim, nos envolvente o suficiente ao transmitir a realidade dos campos de concentração, as consequências psicológicas do nazismo e eleva a sétima arte ao seu patamar e função primordial : fazer o espectador vivenciar o que é projetado na tela.

Paraíso é reflexo do trabalho minucioso do diretor Andreï Konchalovsky em compor a mine-en-scène. No primeiro ato, tomadas em ângulos variados enriquecem as cenas. A opção em preencher todo o espaço cênico ressaltando o contraste entre o vazio composto pelos objetos e os personagens envolvem o espectador e transparece em vários momentos que estamos diante de uma pintura ou uma bela fotografia. Durante toda a projeção sentimos a alternância da movimentação dos protagonistas em cena ocupando constantemente os planos.


O roteiro explora momentos importantes da vida dos protagonistas e aos poucos o espectador compreende a ligação entre Olga e Helmut. Ao optar por centralizar os personagens, o diretor ressalta ao máximo e evidência as atuações presentes nas cicatrizes deixadas pela guerra. Confissões intensas são imersas em uma câmera estática, os atores estão desarmados de toda a sofisticação vivenciada no passado. As marcas da guerra são transmitidas em cada cena com competência por Iuliya Vysotskaya. Em forma de depoimento, o público sente o sofrimento e a degradação da protagonista. O roteiro é fundamental ao abordar a dualidade existente na guerra. Helmut acredita piamente que a extinção de outras "raças" o levará ao caminho mais próximo da perfeição e do paraíso. Andreï explora intensamente essa dualidade, a realidade dura dos campos de concentração e a alienação do oficial da alta patente das tropas nazistas.

A dualidade também está presente na fotografia em preto-e-branco. A sofisticação aristocrata e os horrores da guerra são apresentados com a mesma intensidade. O preto- e-branco torna-se reflexo da angústia e desespero da protagonista ao passar fome, mas também embala momentos de afeto do casal. A importância da fotografia se faz presente em cenas mais dramáticas com o jogo de luz e sombra na movimentação dos personagens.

Paraíso é um filme que insere o espectador nos horrores da guerra e extravasa sentimentos diversos existentes no ser humano. A ganância ao lucrar com o sofrimento alheio e o amor que ainda existe mesmo quando a luta pela sobrevivência é a prioridade. Uma trama tocante que transforma o espectador em protagonista.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...

Uma provável franquia (Histórias Assustadoras para Contar no Escuro)

Um grupo de amigos que reforça todos os estereótipos possíveis, a curiosidade que destaca os laços da amizade, uma lenda sobre uma casa assombrada e desaparecimentos constantes. Histórias Assustadoras para Contar no Escuro apresenta uma trama previsível repleta de referências à filmes  e séries lançadas recentemente como It: A Coisa e Stranger Things. É a velha cartilha de Hollywood: se deu bilheteria em um estúdio à tendência é repetir a dose. Apesar dos elementos e trama repetitivos, sempre vale a pena assistir novos atores surgindo e diretores principiantes com vontade de mostrar trabalho. É o que acontece neste filme produzido e roteirizado por Guilhermo Del Toro . Nada de muito inovador no gênero, o jumpscare reina, porém com o olhar criativo da direção e uma nova geração afiada, o filme ganha o envolvimento do espectador.  O roteiro gira em torno de um grupo de amigos excluídos que finalmente tomam coragem para enfrentarem os garotos mais valentes. Assustados, o ...