Paul Verhoeven ganhou notoriedade com Robocop - Um Policial do
Futuro, mas soube explorar diversos gêneros ao longo da carreira. Com Elle, o
diretor retoma um aspecto interessante que também o fez ser destaque em
Hollywood: protagonistas fortes. Toda regra possui exceções, ao mesmo
tempo que apresentou Sharon Stone ao universo cinematográfico na figura de
Catherine Tramel, em Instinto Selvagem, Paul presenteou o espectador com
uma pequena "pérola"de gosto extremamente duvidoso centrada em Nomi Malone,
a dançaria de Showgirls. A dualidade presente nas protagonistas retorna em Elle. Agora, o público é apresentado a Michèle,
uma mulher que demonstra firmeza em seus atos, mesmo que eles coloquem em
dúvida o carácter da protagonista.
Logo na primeira cena, o espectador toma conhecimento
de um trauma vivido pela personagem. Ela foi brutalmente atacada e violentada
em sua casa. Como Michèle irá superar o trauma? Ela simplesmente limpa o
estrago que o homem fez no local e decide relaxar tomando um banho.
E a vida segue para mais um dia de trabalho. O fato de ignorar o que aconteceu
leva o espectador a sentir uma empatia e curiosidade pela protagonista. Michèle
é dona de uma empresa de games e ao lançar um novo produto, sempre enfatiza que
o jogo precisa conter cenas de violência, sexo e sangue. Não é a toa que a
protagonista ressalta esses aspectos e os transporta para a vida real. Quando
criança, a personagem presenciou cenas fortes praticadas pelo pai e de alguma maneira elas são executadas em pequenos atos ao longo da trama.
O intenso roteiro escrito por
David Birke ressalta a dualidade constante e marcante de Michèle. A
protagonista estabelece uma amizade duradoura com a sócia e ao mesmo tempo é
capaz de fingir estar surpresa quando a amiga revela que o marido tem uma
amante. O fato de Michèle ser a amante, não a deixa indiferente ao "expressar" pesar pelo sofrimento no desabafo da amiga. E, assim, em vários momentos o
espectador se questiona sobre as verdadeiras intensões da personagem. Quando
percebemos que a protagonista nutri sentimentos pelos coadjuvantes que a
cercam, ela nos apresenta situações inesperadas dignas de psicopatia. O prazer,
mesmo que contido, com o sofrimento alheio é nítido. As falas da personagem
ganham um sarcasmo interessante de se observar, principalmente, quando as
nunces são expressas por uma atriz que sabe a riqueza e camadas que Michèle lhe
proporciona. Sempre que a personagem encontra um conhecido esperemos uma pérola
repleta de ironia. A mãe alerta o espectador: " .. outra de suas
armadilhas..". A todo momento somos manipulados pela personagem e entramos
no jogo que ela nos proporciona. O roteiro peca em explorar coadjuvantes pouco
expressivos para realçar atitudes da personagem. Quando o filho está na
maternidade com a namorada, a protagonista conversa com a enfermeira e ressalta
inconformada: "Não consigo entender como ele saiu de mim?". Um
personagem que não acrescenta em nada ao longo da trama. Realmente, não dá para
compreender como ele pode ser filho de uma mulher tão forte e decidida. Se ele
consegue ser irritante, imagine a namorada? Apesar de ter um desfecho
fundamental na trama, a construção do personagem provoca ruídos e falhas no
roteiro. Outro aspecto que poderia facilmente ser descartado é o
fanatismo religioso da personagem vivida por Virgine Efira. Ela serve somente
de escada para evidenciar a figura de Laurent Lafitte que já é um personagem charmoso e dúbio o suficiente para atrair o espectador sem precisar de suporte .
Como o filme proporciona ao espectador um estudo de
personagem, nas mãos de uma atriz mediana Elle poderia ser um suspense como
outro qualquer, mas Isabelle Huppert nos apresenta uma protagonista repleta de
camadas. A atriz sabe que possui uma personagem extremamente rica e brinca em
cena. Isabelle solta uma gargalhada e lança olhares que sugerem diversas
interpretações. A atriz explora perfeitamente a dualidade de
Michèle. Quando a personagem está em cena, o público fica apreensivo sem saber
ao certo o que esperar e qual atitude que ela irá tomar. O sarcasmo presente no
roteiro evidencia a empatia que Isabelle utiliza ao estabelecer uma relação com
o espectador. O fato da personagem demonstrar preocupação com a situação
financeira do marido, não a impede de sentir prazer em machucar levemente a
atual namorada dele ou até tentar disfarçar a satisfação em saber que ele foi abandonado.
A atriz alterna momentos em que projeta a dúvida no espectador. No decorrer da
narrativa, a protagonista utiliza a violência como prazer. Um prazer que possui
limites porque ela sabe até que ponto o jogo estabelecido com os coadjuvantes
lhe satisfaz. Isabelle Huppert merece ao menos uma indicação ao Oscar de melhor
atriz. Difícil pensar em outro nome tão competente quanto para dar vida à
Michèle.
O que auxilia na composição da protagonista é
composição das cores presentes no figurino da personagem. Sempre com cores
escuras e tons de vermelho no baton ou no vestido. Vale destacar o jogo de
combinação de cores para ressaltar a atração evidente na figura de Patrick. O
charme que atrai Michèle também está presente na cor da blusa do personagem.
Ambos vestem vermelho para insinuar um provável sentimento entre eles. A ideia do
lenço ao redor do pescoço da protagonista proporciona ao espectador a intenção de
sufocamento. Vale destacar que no desfecho da trama, a personagem aparece com
uma delicada gargantilha sugerindo a ideia de libertação.
A direção de Paul Verhoeven é precisa e reflete a
firmeza da personagem. A maneira como o diretor conduz a câmera proporciona ao
espectador absorver logo na primeira cena a atmosfera de Elle. O suspense é
mantido e projetado na dupla principal. Os diversos takes que Paul faz de
Isabelle projeta ainda mais a frieza necessária para envolver o espectador.
Somente o destaque para alguns coadjuvantes de pouca relevância alternam o
andamento da narrativa. O núcleo voltado para o ambiente de trabalho da
protagonista destoa a conexão do público com a tensão gerada ao longo da trama. O diretor consegue proporcionar ao espectador a dualidade presente na
protagonista e a aura sufocante da narrativa.
Precisamos falar sobre Michèle e
o poder que ela exerce no espectador. Você pode odiá-la ou se sentir atraído
pelo jogo que ela lhe proporciona. Mas existe algo que não há como negar :
indiferente você não ficará.
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