Pular para o conteúdo principal

A outra face da moeda (Sob Pressão)


Apesar do diretor Andrucha Waddington afirmar em entrevistas concedidas na última edição do Festival do Rio que Sob Pressão não é um filme voltado para denunciar a situação da saúde pública no Brasil, o livro em que a obra foi baseada constata o contrário. Também no Festival, o médico Marcio Maranhão, autor do livro Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro, relatou que o filme é uma obra de ficção, mas pode ser visto como o reflexo da realidade constante do profissional da saúde que vive literalmente "pressionado" 24 horas por dia. 

O espectador é inserido na atmosfera tensa do filme logo nas primeiras cenas quando os créditos iniciais tomam conta da tela. Uma situação conflitante gera outra e, assim, o desenrolar de outro lado da realidade é observado pelo público: o cotidiano de médicos, enfermeiros e anestesistas. E, principalmente, o lado humano desses profissionais. Após estabelecer o primeiro contato com o que poderia ser uma ótima proposta, a tensão e adrenalina constantes intercaladas com a trilha sonora pulsante ganham um ritmo totalmente distinto de que foi apresentado no começo da narrativa. A falta de ritmo pode ser justificada pela introdução do arco dos personagens e os conflitos que cada um vive dentro da emergência e no centro cirúrgico. O equívoco foi a opção do diretor em não saber alternar esses momentos para a fluidez do filme.


A tensão estabelecida na trama acompanha constantemente o personagem de Júlio Andrade. Dr. Evandro mais parece uma panela de pressão prestes a explodir. Por ser o cirurgião chefe, todas as decisões são tomadas por ele e como o roteiro faz questão de enfatizar a todo instante, decisões tomadas geram consequênciais muitas vezes drásticas. O ar melancólico e intenso que o ator proporciona para o espectador, nos faz ficar presos aos conflitos gerados por ele no decorrer da trama. O restante do elenco também entrega um trabalho competente e interessante. Ícaro Silva como Dr. Paulo estabelece e faz vir a tona os dilemas éticos dos personagens. Marjorie Estiano apresenta Dr. Carolina com tranquilidade e doçura em meio ao caos e tensão dos profissionais envolvidos. Sabe aquela personagem que está em todos os momentos drásticos do filme e mantém a calma necessária para indagar os demais e não esmorecer em nenhum momento? Nas mãos de uma jovem atriz seria um trabalho extremamente dramático, mas Andréa Beltrão entende que a pressão está nos demais personagens e apresenta uma interpretação contida e repleta de sutileza na forma como desenha as falas de Ana Lúcia.

O trabalho do elenco é constantemente sabotado pelo roteiro. O núcleo familiar de Paulo é onde esse aspecto fica mais evidente. Uma subtrama ressaltando o conflito do personagem quebra não somente o ritmo do filme como também deixa explícito a precariedade em desenvolver as tramas que realmente fazem sentido no contexto apresentado. Fator presente também no arco de Carolina. Forçar um romance da personagem não acrescenta em nada na tensão que o filme tenta passar. Há um choque entre transmitir tensão e achar que está gerando tensão. Os diálogos éticos e questionamentos que claramente representam a realidade médica são enfatizados por clichês com uma atmosfera que leva ao espectador a ideia de tensão, mas todas as falas são acompanhadas de pausas constantes e os conflitos tornam-se apenas um emaranhado de indagações sem um fio condutor. E a tensão presente no começo do filme? É substituída no decorrer do primeiro ato quando o espectador é imerso em um seriado americano bem similar ao Plantão Médico.

Sob Pressão reflete a realidade presente na saúde pública do país. Evandro é o retrato do desgaste de uma classe que muitas vezes sacrifica a própria saúde mental e física para fazer o possível na tentativa de salvar vidas. Não importa se é um traficante, uma criança ou um policial, o comprometimento com a vida vem em primeiro lugar. Sob Pressão ressalta a importância de refletir que toda moeda possui dois lados. Temos mais contato com uma face pelos veículos de imprensa, o descaso com os pacientes largados em macas nos hospitais. O filme apresenta a outra face tão dura quanto a realidade que vivenciamos no dia a dia, o lado dos profissionais que lutam com poucas ferramentas para manter a tranquilidade em meio ao caos das emergências públicas do país. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...

Uma provável franquia (Histórias Assustadoras para Contar no Escuro)

Um grupo de amigos que reforça todos os estereótipos possíveis, a curiosidade que destaca os laços da amizade, uma lenda sobre uma casa assombrada e desaparecimentos constantes. Histórias Assustadoras para Contar no Escuro apresenta uma trama previsível repleta de referências à filmes  e séries lançadas recentemente como It: A Coisa e Stranger Things. É a velha cartilha de Hollywood: se deu bilheteria em um estúdio à tendência é repetir a dose. Apesar dos elementos e trama repetitivos, sempre vale a pena assistir novos atores surgindo e diretores principiantes com vontade de mostrar trabalho. É o que acontece neste filme produzido e roteirizado por Guilhermo Del Toro . Nada de muito inovador no gênero, o jumpscare reina, porém com o olhar criativo da direção e uma nova geração afiada, o filme ganha o envolvimento do espectador.  O roteiro gira em torno de um grupo de amigos excluídos que finalmente tomam coragem para enfrentarem os garotos mais valentes. Assustados, o ...