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O sofrimento e um coração que insiste em bater (Julieta)


Acredito que seja compreensível para um diretor querer dar novos rumos para a carreira. Podemos ver este aspecto em Amantes Passageiros, um filme que destoa drasticamente do universo retratado na filmografia de Almodóvar. Felizmente, Pedro retoma ao que fez dele um diretor autoral e em Julieta o universo feminino é novamente explorado. Na trama, a protagonista encontra casualmente com Beatriz, uma antiga amiga de sua filha Antía. Esse reencontro desperta lembranças do passado e o desejo de manter novamente contato com a filha após doze longos anos.  

Julieta carrega um trauma que a faz reviver o passado e sofrer constantemente os efeitos dele. Uma depressão profunda atinge a protagonista que encontra o amparo necessário e a razão para continuar vivendo na presença da filha. Antía cuida zelosamente da mãe durante o período da adolescência, mas ao completar dezoito anos decide se afastar de todos e fazer um retiro espiritual. Ao se despedir, a filha demonstra cansaço pelo comportamento da mãe e enfática diz: “Chega de drama”. E decide finalmente viver sua vida e não compartilhar mais do sofrimento de Julieta. 

Almodóvar consegue como poucos transparecer na tela as mazelas do ser humano e causar a inevitável sensação de identificação do espectador, mesmo que para isso utilize ao extremo do melodrama, marca presente em todos os roteiros do diretor. A mensagem para o público é clara: quero que sinta toda a trajetória de sofrimento da protagonista. Não existe meio termo com Almodóvar, tudo é explorado à flor da pele. O roteiro peca em mostrar a relação de Julieta com o pai. Este núcleo não acrescenta em nada para a história. Já Rossy de Palma e sua Marian auxiliam no humor negro da trama. A atriz consegue transmitir um olhar mórbido para a personagem, mas não deixa de explorar no devido momento a sensibilidade necessária presente em sua relação com Antía.


A forma interessante como o diretor filma o apartamento e os enquadramentos da câmera feitos por zoom transmitem a sensação constante de aprisionamento da personagem. Totalmente distinta da atmosfera vivida por Julieta quando ela encontra seu amor e vive durante um bom tempo à beira mar em uma casa ampla que reflete a liberdade e o desejo do casal. Destaque para o cuidado da direção de arte ao escolher as cores frias do papel de parede para refletir cada vez mais o recolhimento e a depressão da protagonista. Mas o vermelho do desejo, como não poderia faltar, também está presente.

Cada ser humano sente as dores que a vida lhe proporciona de formas distintas. A mãe luta constantemente com a perda do marido e a ausência da filha. Já a filha troca uma prisão, a dor da mãe, por outra que pode lhe trazer certa ilusão de alívio, o fanatismo religioso. O filme nos faz refletir sobre até que ponto vivemos a dor do outro, ou somos obrigados pelas circunstâncias a suportá-la. Quem sabe algum dia chegar a compreendê-la? Ao final, a cena inicial faz todo sentido para a história das mulheres fortes retratadas por Almodóvar. Apesar de todo sofrimento vivido por elas existe a presença de uma respiração tímida mostrando ao espectador que o coração ainda insiste em bater.

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