Pular para o conteúdo principal

O que move o filme são os simbolismos (O Poço)


O Poço é um filme distópico, porém a narrativa de Galder Gaztelu - Urrutia é puro reflexo da realidade atual. Na trama Goreng decide tentar parar de fumar e torna-se voluntário por seis meses em uma prisão. Independente do que cada ser humano fez para estar no local, alguns passam pelas mesmas experiências. Goreng acredita que seis meses serão suficientes e leva consigo somente o clássico de Miguel Cervantes, Dom Quixote. Além da leitura, o protagonista tem a companhia de Trimagasi, um senhor que o situa nas regras do poço. A divisão da prisão consiste em níveis, cada um estabelece o status social de uma dupla. Nos primeiros estão as duplas privilegiadas e a cada nível sofrimento aumenta. A luta pela sobrevivência se faz necessária porque uma mesa situada no meio com comida passa em cada nível. Obviamente, essa palavra é importante, a comida fica mais escassa à medida que a mesa passa pelos níveis e cada dupla come os restos deixados pelos superiores. Dessa forma, além da sobrevivência, o psicológico também move as ações do protagonista. Começa uma luta pelos instintos básicos, mas também uma verdadeira batalha de cunho mental.

Sabiamente Galder explora a intensidade dos atores em cena. No primeiro ato Goreng fica extremamente perdido com as regras do poço e o envolvimento do espectador é imediato, pois nos colocamos na pele do protagonista. O espectador acompanha cada reviravolta presente no roteiro com a mesma surpresa do personagem. Para que a narrativa reverberasse no espectador o trabalho intenso dos atores faz toda a diferença. O Poço é um filme completo nos elementos narrativos, porém as atuações são primordiais para que tudo esteja conectado. O trabalho de Ivan Massagué consiste em camadas diferenciadas conforme Goreng passa pelos níveis da prisão. No começo existe estranheza e até certo humor entre os personagens. Quando o espectador é apresentado aos diversos níveis a atuação de Ivan ganha dimensões psicológicas e a entrega do ator é total. O trabalho é completo de cunho físico e imersivo nas alucinações propostas pelo roteiro. Existe um momento em que o desgaste é tamanho que o espectador sente a entrega de Ivan. Já Zorion Eguileor apresenta Trimagasi de maneira enigmática e igualmente envolvente. O ator trabalha o humor de forma sutil e pontual ao mesmo tempo que explora camadas de psicopatia ou seria uma luta pela sobrevivência? Acredito que existem traços de psicopatia em Trimagasi muito pelo fato do personagem estar vivenciando um longo período na prisão, como também por não esconder o prazer de torturar o companheiro de nível. Os demais coadjuvantes reforçam os aspectos sociológicos, filosóficos e religiosos presente nos atos.


Os elementos narrativos são apresentados ao espectador de forma coordenada para proporcionar ritmo a narrativa. A paleta de cores frias intensifica a sensação de aprisionamento e loucura dos personagens. Não é à toa que as referências bíblicas presentes nos personagens são exploradas na cor vermelha e quase sempre Trimagasi também está banhado no vermelho. Outro elemento fundamental é a trilha sonora que reforça a atmosfera da narrativa. Interessante como determinado som dos níveis mescla com a trilha causando desconforto contínuo no espectador. A direção alterna momentos de tensão e violência extrema explorando ao máximo enquadramentos fechados e primeiro plano das duplas. Para extrair a interpretação dos atores Galder intensifica o close em todos os personagens quando um conflito interno se faz presente.

O que move a trama é o roteiro que possui várias interpretações e simbolismos. Em um primeiro plano existe a noção de sociedade e divisão de classes. Os que estão no topo sempre se fartam das melhores comidas e bebidas, enquanto os que estão nos níveis inferiores comem os restos buscando a sobrevivência. A personagem que trabalha na prisão e tenta modificar a situação de forma pacífica logo é descartada prevalecendo à sobrevivência e ganância. Outro ponto interessante é que o protagonista vivencia alguns níveis justamente para levantar questionamentos no espectador sobre como nosso comportamento é moldado pelo status social em que estamos no momento. Como a busca pela pacificação não é bem sucedida, a violência se faz necessária para que a mensagem chegue a administração da prisão. Outra interpretação possível é a visão bíblica sugerida nas ações dos personagens. O protagonista é o Messias que passa por várias tentações do Diabo, na figura do velho, e de Maria Madalena, a mulher que ele instintivamente tenta salvar. Os níveis representam o céu, purgatório e inferno. À medida que o protagonista permanece em cada nível, várias tentações surgem como alucinações de Goreng. No desfecho o protagonista se sacrifica pra salvar todos e enviar a pequena garotinha como esperança para o recomeço. O final em aberto instiga o espectador à refletir sobre vários simbolismos, e esse é o verdadeiro motivador do filme.


Comentários

Anônimo disse…
Maravilha de crítica!
Paula Biasi disse…
Obrigada por acompanhar o meu trabalho.

Postagens mais visitadas deste blog

E o atendente da locadora?

Tenho notado algo diferenciado na forma como consumimos algum tipo de arte. Somos reflexo do nosso tempo? Acredito que sim. As mudanças não surgem justamente da inquietação em questionar algo que nos provoca? A resposta? Tenho minhas dúvidas. Nunca imaginei que poderia assistir e consumir algum produto em uma velocidade que não fosse a concebida pelo autor. A famosa relíquia dos tempos primórdios, a fita VHS, também nos aproximava de um futuro distópico, pelo menos eu tinha a sensação de uma certa distopia. Você alugava um filme e depois de assistir por completo, a opção de retornar para a cena que mais gostava era viável. E a frustração de ter voltado demais? E de não achar o ponto exato? E o receio de estragar a fita e ter que pagar outra para o dono da locadora? Achar a cena certinha era uma conquista e tanto. E o tempo...bom, o tempo passou e chegamos ao DVD. Melhoras significativas: som, imagem e, pasmem, eu poderia escolher a cena que mais gostava, ou adiantar as que não apreciav...

Não, não é uma crítica (Coringa : Delírio a Dois)

Ok, o título estampado no cartaz é: Coringa: delírio a dois. Podemos criar expectativas que a continuação é um filme do Coringa, correto? Na realidade, o que Todd Phillips nos apresenta e faz questão de reforçar a cada cena é que temos o Coringa, porém, o protagonista é Arthur Fleck, um homem quebrado físicamente e mentalmente. Temos também Lee Quinzel, que projeta no outro um sentido na vida e começa a manipular Arthur, para que Arlequina venha à tona. Podemos refletir sobre a manipulação da personagem, ela inclusive reforça:"Não assisti ao filme vinte vezes, talvez umas quatro ou cinco. Quem não mente?". Mas dizer que ela é culpada pelas atitudes de Arthur/ Coringa? A coerência existe no fato da personagem possuir um transtorno mental e, por isso, justifica o desejo e manipulação. Agora, qual a necessidade de criar uma pauta inexistente? O grande equívoco talvez seja do próprio estúdio em não vender o filme como musical e gerar expectativas equivocadas no espectador. É um f...

Uma provável franquia (Histórias Assustadoras para Contar no Escuro)

Um grupo de amigos que reforça todos os estereótipos possíveis, a curiosidade que destaca os laços da amizade, uma lenda sobre uma casa assombrada e desaparecimentos constantes. Histórias Assustadoras para Contar no Escuro apresenta uma trama previsível repleta de referências à filmes  e séries lançadas recentemente como It: A Coisa e Stranger Things. É a velha cartilha de Hollywood: se deu bilheteria em um estúdio à tendência é repetir a dose. Apesar dos elementos e trama repetitivos, sempre vale a pena assistir novos atores surgindo e diretores principiantes com vontade de mostrar trabalho. É o que acontece neste filme produzido e roteirizado por Guilhermo Del Toro . Nada de muito inovador no gênero, o jumpscare reina, porém com o olhar criativo da direção e uma nova geração afiada, o filme ganha o envolvimento do espectador.  O roteiro gira em torno de um grupo de amigos excluídos que finalmente tomam coragem para enfrentarem os garotos mais valentes. Assustados, o ...